Cunha: o quanto é nossa responsabilidade?

A Presidenta Dilma Rousseff e o ministro da Defesa, Jaques Wagner, participam da cerimônia comemorativa do Dia do Exército, no Setor Militar Urbano (Antônio Cruz/Agência Brasil)
A Presidenta Dilma Rousseff e o ministro da Defesa, Jaques Wagner, participam da cerimônia comemorativa do Dia do Exército, no Setor Militar Urbano (Antônio Cruz/Agência Brasil)

Esses dias eu postei no facebook algo que era uma resposta velada a várias coisas que ando vendo e que têm me deixado muito chateado e revoltado. O que postei foi o seguinte: Acho curioso (pra não dizer preocupante) como as pessoas andam mais preocupadas em deslegitimar o discurso alheio e julgar (em geral recorrendo aos mais rasteiros recursos, como o ad hominem) os defeitos do outro que reforçar seus próprios discursos e argumentos para, aí sim, constituir uma crítica consciente. O dedo na cara tem sido o “argumento” mais comum de todos os lados, mas a reflexão que é bom e faz crescer está guardada na gaveta aguardando uma curtida para garantir que vale a pena. E para tudo que exige ação direta, aí sim problematização, reflexão, mimimis… passa-se mais tempo debatendo pelo em ovo que tirando o pelo do ovo. Não ando com tempo e nem paciência, mas se fosse mesmo dizer tudo que penso ia perder amigos. Ou sei lá, ganhar respeito… a gente nunca sabe.

Por isso, por esse medo, demorei para decidir se efetivamente escrevia esse texto. Antes disso, claro, não o fiz pela falta total de tempo, algo que de certo modo melhorou um pouco agora. Mas com certeza eu tenho plena consciência de que esse texto vai, de algum modo, contra várias ideologias professadas por grandes amigos e amigas e que, de alguma forma, isso pode gerar para mim até inimizades. Porém, tendo em vista que fui dotado da capacidade e liberdade de expressão, sejam elas fruto do livre arbítrio que alguma divindade nos dotou, sejam um direito social necessário para a boa convivência em sociedade, o fato é que decidi finalmente que iria falar, a despeito de tudo isso. E se alguém efetivamente achar que esse texto é ofensivo, que ele fere seus princípios, que ele seja qualquer coisa nesse sentido, estou aberto a críticas CONSTRUTIVAS. Do contrário, não irei dialogar com qualquer ad hominem, argumentum ad ignorantiam, ou quaisquer outras falácias, porque tenho mais o que fazer. A paciência uma hora acaba, até a de Jó.

Por isso, esse texto vai ter muitos trechos de coisas que já postei no facebook e que, de um modo ou de outro, convergem para o que pretendo expor. Muito do que escrevi aqui muita gente já leu, em outro formato, mas eu resolvi aglutinar tudo num texto só, enorme. Não deveria fazer isso, mas não aguentei, e vou ter que desabafar do jeito que mais sei fazer: sendo verborrágico.

Ah, e claro, antes que eu me esqueça: se você é um conservador, machista, olavete, coxinha, leitor de Veja ou coisa similar e acha que esse texto é de alguma forma argumento para o que você defende, pra atacar “a esquerda caviar”, então vá embora daqui, esse não é seu lugar e esse texto não é pra você. Se você o usar para justificar seu fascismo você estará sendo mau-caráter e cometendo desonestidade intelectual, pois eu não estou do seu lado e não corroboro com a sua visão de mundo. Então desde já peço que pare de ler, vá embora daqui, abrace seu volume de Mises e chore no seu canto, ao lado do seu cartaz do Aécio, e não me encha o saco.

Enfim, vamos lá, pra quem tem paciência de ler um texto de 7 laudas.

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Conjuntura


I.
Do dicionário Caudas Aulete online:
conjuntura (con.jun.tu.ra) sf.
1. Situação não duradoura, resultante da combinação de diversos fatores ou circunstâncias: A atual conjuntura econômica é um desastre.: “Seus próprios pais com ela se aconselhavam nas conjunturas difíceis.” (Franklin Távora, O matuto))
2. Fato, acontecimento, ocorrência que modifica ou caracteriza determinada situação concreta.

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Precisamos falar sobre Olavo

O astrólogo Olavo de Carvalho, na Veja.

Um dia desses, compartilhei esse texto do Diário do Centro do Mundo sobre o autointitulado filósofo e ex-astrólogo Olavo de Carvalho. Dentre os comentários ao texto, um grande e inteligentíssimo amigo – daqueles que fazem você ainda ter vontade de permanecer no Facebook – ofereceu-me uma peça para a reflexão: a fama do pensador conservador é responsabilidade de seus seguidores, apelidados de olavetes, mas também da esquerda dá ibope para ele, rebatendo as coisas que ele diz, que são evidentes inverdades, baseadas numa percepção simplista da relação de forças entre esquerda e direita. Segundo esse amigo, Olavo tem ideias tão fracas que deveria ser ignorado pelos seus detratores.

Eu penso o exato contrário, e esse texto serve pra explicar o porquê.

Antes, preciso fazer um recapitula.
Eu estava esses dias acompanhando discussões internéticas acaloradas num dos grupos do Facebook dedicados à universidade onde estudo. A motivação? Uma postagem de um homem, defensor ferrenho do livre mercado, adepto das teses de Ludwig Von Mises e, acima de tudo, detrator de todo pensamento de esquerda. Na mesma época, repetiam-se diariamente os exemplares de oratória conservadora da jornalista e âncora do Jornal do SBT, Raquel Sheherazade, até o ponto em que ela defendeu abertamente a ação de justiceiros no RJ, que decidiram agredir, mutilar e imobilizar um menor que supostamente havia cometido crimes naquela região. Também acompanhamos o caso da médica cubana Ramona Matos Rodríguez que desistiu do programa federal “Mais médicos” e pediu ajuda ao deputado do partido DEM Ronaldo Caiado, conhecido opositor do governo, para entrar com uma ação trabalhista contra o governo, acusando-o de ferir seus direitos no contrato com Cuba. E, falando em deputados, vimos notícias do término do polêmico mandato do deputado federal e pastor evangélico Marco Feliciano como líder da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, que gerou nova polêmica pela possibilidade de seu substituto ser o deputado Jair Bolsonaro, ferrenho defensor do regime ditatorial militar, opositor ainda mais pesado das causas da comunidade LGBT que o próprio pastor. Além disso tudo, há mais ou menos uma semana, acompanhamos o primeiro beijo entre dois personagens homossexuais masculinos em uma novela da Rede Globo, o que gerou tanto elogios e comemorações como diversos ataques de setores inconformados com a “propaganda” a favor dos gays. E, para terminar essa sequência não cronológica de eventos, ocorreu no sábado, dia 1º de fevereiro, uma invasão de torcedores ao centro de treinamento do Corinthians, na qual diversos homens realizaram furtos, ameaçaram e agrediram jogadores e funcionários do clube, pela situação complicada que o time vive na lanterna do Campeonato Paulista de Futebol.
Todas essas situações, aparentemente não associadas diretamente, geraram manifestações na internet. E as manifestações, de apoio ou rechaço, são todas em geral tão explosivas quanto as bombas da polícia militar na repressão de manifestações: nem sempre matam, não impedem a continuidade das manifestações, mas causam danos graves e mais revolta. O fato é que a acirrada disputa que surge nas redes sociais e na mídia entre esquerda e direita é reflexo, a meu ver, da popularização do discurso de certos pensadores, especialmente o Olavo de Carvalho. E, mais que isso, todas essas situações e as reações que elas geraram também são consequência do que ele e seus seguidores tentam impor ao pensamento nacional. O que alguns enxergam como uma fanfarronice, eu enxergo como uma agenda política, clara, mas desorganizada. E os seus alvos são o pensamento tradicional da esquerda, os movimentos sociais, que ganharam força com a subida do governo do PT ao poder, e o próprio governo. E por isso penso que, ignorando Olavo, estamos ignorando algo que pode ser muito mais nocivo que qualquer Feliciano ou Bolsonaro, porque está por trás deles, dando munição para as suas sandices.
Olavo não é aceito em nenhuma universidade brasileira séria do país – até porque o próprio afirma que nenhuma universidade brasileira presta e que ele é maior que todos os nossos pensadores – , mas ele já está entrando sorrateiramente nelas por meio de seus admiradores. Eu escrevi um texto, há um tempo atrás, sobre o jovem da UFSC que escreveu um “manifesto” contra a exigência de Marx no seu curso. A carta desse jovem era um exemplar de todo o pensamento de Olavo, e expunha claramente como os seguidores dessa filosofia anti-esquerdista estão efetivamente se organizando de alguma forma: o jovem em questão escreve para um blog chamado União Conservadora da UFSC. O que soaria anedótico no universo de nosso ensino superior é apenas um diagnóstico de que Olavo tem influência, importância e principalmente espaço para agregar seguidores em qualquer nível de escolaridade. Seus tentáculos se estendem para além de seus vídeos no YouTube.
Nesse mesmo texto, comentei como a popularização e a ampliação da internet promoveram o acesso de muitas pessoas a vários pensamentos diversos dos conteúdos presentes nas universidades, e como as redes sociais permitiram o contato entre pessoas com ideias similares. Olavo de Carvalho está presente no universo nacional há muito mais tempo que o YouTube, mas foi o fato dele ter um site para divulgar suas ideias e uma série de vídeos que o popularizou para além do universo dos admiradores do pensamento conservador. Como observei no texto supracitado – e advogo o direito de copiar as conclusões que realizei nesse texto -, com a dinamicidade do acesso a informações que a internet promove, diversos pensadores que se alinhavam a um espectro conservador direitista começaram a tomar conta de espaços midiáticos virtuais e assimilar o discurso do Olavo. É só prestarmos atenção que veremos que não apenas o discurso do jovem da UFSC, como a maior parte dos discursos conservadores de Sheherazade, Feliciano, Bolsonaro, Caiado e etc. se alinha em maior ou menor grau ao que o Olavo de Carvalho professa, com a mesma exata terminologia – à exceção de alguns palavrões.
Uma das motivações desses seguidores de Olavo é a suposta marginalização de qualquer projeto de pensamento que divirja do modelo assumido e professado nas academias universitárias brasileiras. O conhecido compadrismo da academia mina qualquer reflexão divergente daquela consagrada nos departamentos universitários, sejam eles de esquerda ou direita. Apesar de sabermos que há uma tradição a zelar – e não se deve esperar a substituição do pensamento de Celso Furtado pelo de Von Mises, mesmo que o último seja um economista sério e não um conhecedor superficial das teses que defende, como Olavo -, é importante salientar que nossos professores e pesquisadores da universidade brasileira em geral buscam garantir os seus privilégios em relação ao pensamento intelectual produzido. Por isso, inclusive, que muito desse pensamento é mera reprodução, com pouca novidade em relação ao que se produziu nos anos 60 e 70.
Essa postura gera revolta nos setores que advogam a mínima representatividade no debate intelectual brasileiro, e os faz rejeitarem o modelo de universidade que se construiu no Brasil. É evidente, para qualquer observador, que a universidade é alinhada ideologicamente, e que há um conflito sério em sua estrutura, consequência do crescimento dos valores ligados ao universo do mercado dentro dos cursos universitários. Há um conflito inevitável entre a universidade como produtora de bens de consumo e mão-de-obra especializada, a necessidade do sistema capitalista, e como fomentadora de filosofia, educação e estimuladora de reflexão, na sua base iluminista clássica. E é por isso que comumente se dá um valor muito maior a um profissional de uma área tecnológica que a um historiador, sociólogo ou geógrafo que, quando reduzidos ao seu papel de força de trabalho, se encontram com sua atuação restrita ao universo da educação. A lógica de mercado, imediatista, exclui o pensamento ideológico tradicional da universidade, especialmente aquele que fundamentou os cursos de humanas, em sua maioria alinhados ao pensamento de esquerda, e os substitui pelo seu imediato contrário – que não raro encontra nos argumentos completamente descabidos de Olavo de Carvalho um sustentáculo filosófico superficial para a sua cruzada. Olavo é mais maquiagem de pensamento que pensamento em si, mas encontra brecha na fraqueza filosófica da lógica mercantil para impor uma teoria toda fundamentada em incongruências e histrionismo.
Mas há uma outra motivação, que está por trás do ataque ao jovem no RJ e da defesa de Raquel Sheherazade ao ato: a nossa enraizada cultura do linchamento e do vigilantismo. Há um excelente texto de José De Souza Martins, Professor do Departamento de Sociologia da FFLCH-USP, compartilhado por amigos meus no Facebook – como eu disse, por eles que eu não largo essa rede social – que traz um quadro bem claro dessa cultura, com histórico e dados das ocorrências. A conclusão do texto é exatamente o que liga Sheherazade, os justiceiros e Olavo de Carvalho:

A crítica conservadora ao mundo moderno, que seria o mundo da multidão, presente na interpretação leboniana, não tem condições de revelar que o próprio mundo do conservadorismo e das concepções tradicionais ganha uma força patológica evidente nos casos de linchamento. As concepções totalizantes e orgânicas que mediatizam três quartos dos casos de linchamento, que são concepções conservadoras, têm nos linchamentos um desdobramento sombrio. Não só pelos crimes em si que os linchamentos efetivamente são. Mas, sobretudo porque os linchamentos nos revelam que esta sociedade é incapaz de abranger em laços de tipo contratual, na reciprocidade de direitos e deveres, grandes parcelas de sua população: mais de 260 mil brasileiros participaram de linchamentos nas duas últimas décadas. Nesse cenário de urbanização inconclusa, insuficiente, patológica e excludente, de relações sociais essencialmente mediadas por privações, os processos sociais regeneram com facilidade significações arcaicas que revestem de alguma coerência um modo de vida que, mais do que contraditório e excludente, é carente de sentido. Como vários depoimentos revelam, é o que dá à consciência dos protagonistas da injustiça do linchamento a certeza de que participaram de um ato moralmente justo.

Essa crítica conservadora ao mundo moderno, calcada no conceito do moralmente justo, é o que fundamenta a filosofia de Olavo e dos demais. É um modo de conceber as coisas no qual a moralidade – especialmente a cristã, conservadora e liberal – substituiu a ética e a ideologia, e atribuiu a essa última a responsabilidade pelo estado atual das coisas, especialmente a violência e a suposta degradação moral. É claro que essa é uma crítica circular: a degradação moral é consequência direta de se conceber que certo comportamento é degradante em relação a uma moral escolhida. Um exemplo disso é a crítica ao comportamento homossexual, que depende exclusivamente de uma moral que considere a existência de um comportamento “normal” e penalize seus desvios. Todas as teorias levantadas para defender um suposto desvio no comportamento homossexual são subjugadas a essa moralidade, mas o desvio só existe porque se elegeu essa moralidade como ponto de partida. É uma postura que é defendida como algo irrefutável – e a irrefutabilidade é central no pensamento de Olavo – porque recai sobre si mesma. De tal modo, é dogmática e acaba por se mostrar uma não-filosofia.
A defesa do linchamento, da vingança, do justiçamento, estão ligadas de modo patológico ao pensamento conservador. Isso não quer dizer que todo conservador necessariamente é defensor dessas práticas, até porque elas foram assumidas por defensores do pensamento libertário também, em dados momentos. Mas o específico universo da jornalista do SBT, dos invasores do CT do Corinthians, dos espancadores do menino no RJ, é centrado numa maneira conservadora de ver o mundo. E isso tem paralelos com o pensamento de Olavo na medida que este, em seus inflamados discursos, defende o linchamento moral de todo o pensamento de esquerda. A mesma bandeira de que bandido é mau por natureza se ergue para o “marxista” – termo entre aspas pela banalização que Olavo faz dele -, pois este, defensor de “assassinos” como Che e Stálin, defensor do regime castrista ou chavista, é cúmplice e propenso criminoso. A mesma lógica se aplica ao termo “esquerdopata”, com o qual o articulista da Veja Reinaldo Azevedo demoniza todo o pensamento de esquerda. Ao considerar o pensamento de esquerda uma “patia”, ele interioriza a ideia de que o esquerdista é um doente, que pode ser “curado” com a filosofia contrária – se não quiser se curar, é mau-caráter e merece ser execrado e expulso de qualquer debate. Para não dizer que a única defensora dessas ideias dentro da tevê brasileira é a âncora do Jornal do SBT, a mesma emissora traz, em suas afiliadas, gente como Luis Carlos Prates e Paulo Eduardo Martins, que reproduz o pensamento de seu mentor no vídeo abaixo:

O fanatismo dessa ala conservadora não seria tão perigoso se não estivesse presente e conquistando cada vez mais espaços. A minha compreensão, que conduz esse texto, é de que é um movimento que, mesmo desorganizado e com bases filosóficas e argumentativas falhas, tem força de convencimento e por isso seu crescimento é extremamente nocivo. Não se via tanta gente fora dos meios universitários mencionar Von Mises antes de Olavo e cia o elegerem como guru do conservadorismo, e isso demonstra que o filtro de Olavo funciona muito bem. Se fala pouco e quase nem se debate com seriedade o crescimento desse pensamento mais fanático por se considerá-lo algo evidentemente farsesco e carnavalesco, mas essa postura é um pouco ingênua. O Roda Viva, por exemplo, clássico programa de entrevistas pelo qual já passaram grandes pensadores, se tornou porta voz da revista Veja quando foi assumido por Augusto Nunes. Lá, desfilam conservadores, como o músico Lobão e Tuma Jr. E tudo isso passa, de alguma forma, pelo crescimento de Olavo de Carvalho como uma figura referencial para essas pessoas. E não demora muito para que, motivados pelo histrionismo de seu líder, esse grupo exija espaços como o da universidade, participem da vida política nacional e se coloquem como porta-vozes de uma parcela da população que tem visto neles a salvação da “esquerdopatia”. Não é paranoia, ainda mais se considerarmos como o próprio grupo evangélico radical conquistou espaço dominando a mídia e a política, e fez impor-se sua vontade em questões fundamentais dos direitos humanos no país. Se Olavo de Carvalho saísse de sua torre de cristal americana e se candidatasse a um cargo legislativo no momento atual, provavelmente ganharia. Debate-se na universidade o seu “pensamento”, em paralelo à pesquisa científica séria produzida no âmbito acadêmico. Para mim, é notório que a sua influência deixou de ser restrita ao universo das polêmicas virtuais e começou a se expandir para outras frentes, especialmente o discursos de figuras midiáticas. Uma coisa é alguém compartilhando isso na minha timeline do Facebook, outra é Gentili, Lobão, Scheherazade e outros falando essas coisas na tevê, pra milhões de pessoas que não tem a nossa instrução nos assuntos que ele aborda. Como outro amigo disse, ele é um ser caricato e paspalhão, mas quando a maioria das pessoas é mal informada politicamente, isso pode ser perigoso. Meu medo é aquela velha máxima da mentira que repetida diversas vezes vira verdade.

Conservador não precisa de diploma pra ser imbecil

Boa parte da minha revolta com o pensamento conservador e o liberalismo econômico não reside no fato de eu ser abertamente esquerdista. O meu problema com esses “pensadores” é que eles são egoístas. Não, isso não é um julgamento: a pessoa que defende a primazia do pensamento individual sobre o pensamento coletivo é simplesmente um egoísta. Essa pessoas fazem uma suposta profissão de fé na capacidade do indivíduo que, olhando de perto, é apenas uma descrença completa na humanidade como ente coletivo. Sociedades pra eles são indivíduos lutando até a morte pelo seu quinhão, não grupos buscando o que pode ser melhor para todos. Direitos são mercadoria tanto quanto deveres, e o mercado que os regule. Por isso a maioria deles acredita ao mesmo tempo em Deus e na mágica do Mercado Autorregulador. E vão buscar Deus na Igreja, claro, uma instituição comunitária!

Pior de tudo é que toda essa demagogia não contribuiu em nada pra humanidade. Serviu apenas para acirrar preconceitos e munir gente desonesta e mal intencionada em sua missão de acabar com as liberdades das minorias. Pode-se falar a merda que quiser do socialismo mas, como bem apontou em entrevista já antiga o grande Antônio Cândido, o socialismo permitiu que trabalhadores tivessem direitos. O capitalismo que esses senhores defendem nunca previu dar direitos a ninguém.
Quando perguntado se era socialista, o eminente intelectual disse:

Ah, claro, inteiramente. Aliás, eu acho que o socialismo é uma doutrina totalmente triunfante no mundo. E não é paradoxo. O que é o socialismo? É o irmão-gêmeo do capitalismo, nasceram juntos, na revolução industrial. É indescritível o que era a indústria no começo. Os operários ingleses dormiam debaixo da máquina e eram acordados de madrugada com o chicote do contramestre. Isso era a indústria. Aí começou a aparecer o socialismo. Chamo de socialismo todas as tendências que dizem que o homem tem que caminhar para a igualdade e ele é o criador de riquezas e não pode ser explorado. Comunismo, socialismo democrático, anarquismo, solidarismo, cristianismo social, cooperativismo… tudo isso. Esse pessoal começou a lutar, para o operário não ser mais chicoteado, depois para não trabalhar mais que doze horas, depois para não trabalhar mais que dez, oito; para a mulher grávida não ter que trabalhar, para os trabalhadores terem férias, para ter escola para as crianças. Coisas que hoje são banais. Conversando com um antigo aluno meu, que é um rapaz rico, industrial, ele disse: “o senhor não pode negar que o capitalismo tem uma face humana”. O capitalismo não tem face humana nenhuma. O capitalismo é baseado na mais-valia e no exército de reserva, como Marx definiu. É preciso ter sempre miseráveis para tirar o excesso que o capital precisar. E a mais-valia não tem limite. Marx diz na “Ideologia Alemã”: as necessidades humanas são cumulativas e irreversíveis. Quando você anda descalço, você anda descalço. Quando você descobre a sandália, não quer mais andar descalço. Quando descobre o sapato, não quer mais a sandália. Quando descobre a meia, quer sapato com meia e por aí não tem mais fim. E o capitalismo está baseado nisso. O que se pensa que é face humana do capitalismo é o que o socialismo arrancou dele com suor, lágrimas e sangue. Hoje é normal o operário trabalhar oito horas, ter férias… tudo é conquista do socialismo. O socialismo só não deu certo na Rússia.

Por quê?

Virou capitalismo. A revolução russa serviu para formar o capitalismo. O socialismo deu certo onde não foi ao poder. O socialismo hoje está infiltrado em todo lugar.
O destaque em negrito na resposta de Cândido é justamente o que o pensamento conservador renega. E isso fica evidente em qualquer texto que você leia, desde os micos de circo como Reinaldo Azevedo e Olavo de Carvalho até aqueles que se acham sérios, como os membros de um certo Instituto que tiveram a pachorra de publicar um texto intitulado “A obrigatoriedade do diploma – ou, por que a liberdade assusta tanto?” O texto é de 2009 mas só trombei com ele hoje por conta de meu irmão, jornalista de formação, e como ele fiquei abismado. Pra começar, o conceito de liberdade deles é uma abominação tão grande que chega a dar nojo.

Segundo que ele defende algo que não faz o menor sentido: o fim dos diplomas. Para esses conservadores o ser humano é tão autossuficiente, tão capaz, que ele deve gerir sua própria educação, independente de instituições, que para eles só servem para “perder tempo e dinheiro sendo doutrinado e estupidificado em cursos de ciências humanas”. A solução é a educação caseira, já que no mundo de hoje “com a quase universalização da internet, qualquer um está preparado para estudar por conta própria, desde que esteja munido do impulso genuíno para tal.” Eu poderia passar dias explicando porque isso é um absurdo, mas eu prefiro dar a palavra a meu irmão que rebateu esse texto muito melhor que eu no facebook:

Muito bem. O STF revogou a exigência do diploma de jornalismo (eu sou formado em jornalismo, inclusive), porém, o autor do texto esquece de mencionar que a revogação foi um pedido da ANJ, a Associação Nacional dos Jornais. Ou, como nós da área costumamos dizer, a Associação Nacional dos PATRÕES de Jornais. Foi uma entidade patronal que exigiu que o diploma não fosse mais obrigatório. O que uma entidade patronal quer, dentro do próprio sistema de livre mercado que o autor tanto defende? Lucro. Ou seja, a decisão não foi com a intenção de liberdade de expressão, nem pela liberdade dos profissionais não-diplomados. Foi apenas baseada em lucro, puro e simples.
Pois bem, mesmo assim, eu não discordo completamente da medida. Eu sou formado em Jornalismo e não acho que o diploma de jornalista tenha que ser obrigatório para o exercício da profissão. Acho que ele pode ser um diferencial, mas não vejo a necessidade de ser obrigatório.
Agora, dizer que TODAS as profissões poderiam existir sem a regulamentação e obrigação de um diploma, é algo que só mesmo na cabeça de alguém que acredita que o Livre Mercado pode regulamentar todas as coisas funciona. 
Vamos ao caso mais fácil de se criticar, primeiro: Medicina. Profissionais diplomados de medicina cometem erros? certamente. Desobrigar o diploma de medicina, criaria, no mínimo, dois enormes problemas.
1) Uma pessoa que nunca sentou nos bancos de uma universidade de medicina, e tentou aprender tudo de outras formas, só pode comprovar sua perícia de uma forma: na prática. Ou seja, vamos esperar que ele mate umas 30 pessoas nas mesas de operações, até que o livre mercado “regule naturalmente” esse profissional, o excluindo por ele ser um mal profissional. As 30 pessoas que morreram na mesa de operação até que isso acontecesse que se danem né?
2) Uma empresa (pública ou privada) que precise de profissionais de medicina, jamais iria escolher um profissional não-diplomado, justamente pelo risco dito acima. Ou seja, não iria fazer nenhuma diferença. O diploma continuaria sendo obrigatório, apenas extra-oficialmente. Ele poderia continuar exercendo sua imperícia “até aprender” em seu consultório. A única garantia que a empresa teria desse profissional é sua atividade prática.
Quanto a todas as outras profissões que exigem diploma, é fácil ver a mesma coisa. Um profissional ruim mancharia toda a classe? Será mesmo? Ora, isso JÁ ACONTECE no Brasil e no resto do mundo, e em quase todo lugar não é isso que se vê. Policias matam pessoas a torto e a direito, mas eles continuam sendo chamados pra ocorrências, porque? Porque não temos escolha. E nós não temos escolha dentro de um nível de classe trabalhadora.
Se você vê mil médicos matando gente em mesas de operação, quando você tiver uma doença grave, vai recorrer a que? Sua ÚNICA opção, continua sendo os médicos, sejam diplomados ou não. Esse argumento de que um profissional ruim mancharia toda a classe, obrigando-a a se auto-regular não faz o menor sentido, porque quando falamos de classe trabalhista, falamos de um setor inteiro da sociedade, e você não tem opção de decidir por outro. Se a classe médica esta manchada, você não vai subitamente parar de ir a médicos. Porque ou você se trata com eles, ou morre. Simples assim. Não adianta nada você estimular concorrência, se o nível do estímulo é a nível de classe. Só existe uma classe em cada profissão. Não existem duas classes de médicos, apenas uma, com vários sub-níveis.
Quanto a cursos “puramente teóricos”, quando o autor diz que “os professores apenas escrevem em um quadro e passam livros-texto” e que isso pode ser substituído pela internet, o autor indiretamente está defendendo o modelo educacional sócio-construtivista (que os próprios neo-liberais são contra). Por este método, alguém é capaz de aprender sozinho, se ir atrás sozinho. Pra que isso aconteça, é preciso que alguém tenha a tenacidade de um gênio. Ou você acha MESMO que é possível alguém aprender Física Nuclear sozinho, sem professor, apenas com livros? É claro que é possível. Pra gênios. O resto dos mortais precisa de um mediador, o professor, pra fazê-los entender.
Quando o autor defende que tudo pode funcionar pela concorrência do livre mercado, mesmo permitindo a oferta de “aulas práticas” a profissões que precisem disso, o autor esquece que, em alguns casos, estamos falando de vidas. Você não pode esperar que um profissional de Medicina não-diplomado aprenda matando algumas pessoas até que finalmente ele possa ter a perícia necessária pra trabalhar. Porque sim, meu amigo, um profissional de medicina não é formado só com aulas práticas. Se ele tiver apenas aulas práticas, uma grande maioria vai continuar sendo um péssimo profissional, pela falta de fundamentação teórica.
O mesmo ocorre com Psicologia, que o autor também citou. Você não pode deixar um psicologo não-diplomado aprender ferrando a mente de algumas dezenas de pacientes depressivos, bipolares, com distúrbios psicológicos leves, médios ou graves, até “aprender” e poder concorrer com seus serviços no livre mercado.
Não é possível aplicar o Livre Mercado em profissões cujo erro resulta em dano irreversível ou morte dos seus “clientes”.
Se alguém realmente acredita que é possível aplicar o livre mercado em qualquer coisa, essa pessoa precisa sair da clausura que vive e andar um pouco por ai, olhar ao redor, e ver que o mundo não gira em torno do livre mercado. E sim, das pessoas.

Não sei se preciso dizer mais algo, mas eu faria apenas um adendo: tire a obrigatoriedade da escola e ganhe trabalho forçado infantil. Liberdade é ter o direito de estudar, o dever é apenas o exercício da cidadania básica. Outro modelo geraria uma diferença de classes ainda maior que a que já temos, onde somente os donos do capital econômico e, por conseguinte, do capital cultural teriam seus filhos educados e o cidadão pobre não teria acesso algum à qualquer tipo de educação. Isso só geraria um retorno ao trabalho forçado imposto pelos pais, já que educar a criança passaria a não ser nem mais um bem acessível. Lutamos anos contra isso e é isso que queremos?
Mas tudo bem, você pode entrar lá no portal do “instituto” e ver outros impropérios diversos, todos clichês e bobagens repetidos a exaustão – porque toda falácia se torna verdade quando repetida ad nauseam. O texto em questão nem assinatura tem, o que soa estranho pra um grupo tão individualista, né? Aliás, se o individualismo é tão bom, porque montar um grupo? Não era mais adequado às suas filosofias cada um ir pra sua casa, estudar e lançar seus textos num blog pessoal? 
O conservadorismo e o liberalismo econômico são tão, mas tão errados que chegam a parecer piadas… de extremo mal gosto.