O país frustrado chamado São Paulo

Do facebook do MSPI.


Em 2012 escrevi um texto chamado “São Paulo: mostra a tua cara!“, no qual eu disse a seguinte frase: “Se o governo federal fosse menos bunda mole (e interesseiro), interviria em São Paulo.” Diante dos eventos das últimas semanas, continuo pensando da mesma forma.



O preconceito

O mapa da vereadora do RN Eleika Bezerra Guerreiro
Manifestação de uma Vereadora. Fonte: DCM.

Claro que quem me olha pensa: “esse cara não sofre preconceito! É um homem branco e heterossexual”. Eu não ignoro isso: sou nascido na capital de São Paulo, mudei-me muito pequeno para o interior, para Itapetininga. Mas minhas origens, minhas células, são 100% nordestinas, pois sou filho de pai e mãe paraibanos. Desde pequeno aprendi a conviver com a rica cultura do Nordeste em conjunto com a riqueza caipira inestimável do interior do Estado de São Paulo. Minha infância foi dividida entre o coco de Jackson do Pandeiro e a moda de viola de Tião Carreiro e Pardinho. 
Porém, além disso, desde pequeno também convivi com o preconceito. Lembro-me como se fosse hoje dos garotos da escola me pedindo para pronunciar o nome do estado, só para ouvirem – e rirem – quando dizia “Sum Paulo”, fruto da parcela do sotaque que absorvi dos meus pais. Demorei a perceber qual era o motivo da graça e, como todo bullying, quando a ficha caiu eu senti na pele a marca de ser ostracizado.
Durante um tempo colegas na escola me chamavam de “Pará”, um diminutivo de Paraíba e, claro, faziam piadas com isso. Como faziam com o menino negro, com o mais afeminado da sala, e assim por diante. Eu mesmo, admito, cheguei a praticar maldades contra colegas, reproduzindo cegamente esse círculo vicioso que é o bullying na adolescência – e ainda bem que a gente cresce. Mas hoje, quando olho pra trás, sinto uma angústia difícil de descrever, mas agora com uma origem mais clara para mim.
Dizer que paulista é preconceituoso não é generalização, é consciência histórica. – e, por favor galera, é óbvio que isso não quer dizer que todos sejam, sequer a maioria, e sim que o preconceito está lá, na raiz dessas relações, e se propaga. Posso dizer que eu não sou machista, mas a raiz do preconceito contra a mulher está na heterossexualidade masculina da qual faço parte, não se relativiza isso. Por isso, inclusive, que inicio esse texto comentando sobre o que me torna parte do grupo opressor: sou homem, branco e heterossexual. A única forma de eu entender a lógica do preconceito é reconhecendo que eu sou parte do grupo que é privilegiado por esse preconceito. Não se trata, porém, e aí há um ponto fundamental, de se ver como agressor, mas de se ver NO agressor, como parte do sistema de agressão e, consequentemente, como beneficiário desse sistema. Quando um negro perde a vaga de emprego pra mim mesmo sendo mais competente que eu, não apenas ele foi vítima do preconceito da sociedade, mas eu também preciso entender que sou privilegiado pelo mesmo preconceito. Reconhecimento é fundamental para podermos ter consciência crítica de como a luta funciona.
Aí você pode perguntar: “mas e quando uma mulher é escolhida no meu lugar? Isso não é preconceito reverso?” Isso é uma falácia, como dizer que um cara que xinga um branco pratica “preconceito reverso”. Se quer uma versão mais engraçada do que eu estou falando, tire dez minutinhos para acompanhar o grande Chris Rock botando as cartas na mesa, e depois volte para o nosso texto:


De volta? Ok, continuando:
Além de falácia, “racismo invertido” ou “preconceito reverso” é um argumento muito ofensivo. Esse é o argumento mais usado pelos preconceituosos hipócritas, que teimam em enxergar um equilíbrio de forças onde não há. A mulher em questão foi escolhida porque a sociedade é machista, meu caro, e prefere julgar a beleza dela ao invés da competência. Isso é tão óbvio que chega a assustar pensar que alguém ainda tenha a desfaçatez de colocar-se como vítima numa situação dessas. Mas pode ter certeza, acontece sempre: “fui preterido por causa das cotas” ou “os pobres vagabundos tem mais direitos que eu, que trabalho” ou ainda “bandido come e dorme às minhas custas”. Todas, TODAS essas sentenças tem a mesma origem, preconceito puro.
Além disso, há aquele também velho argumento de que não falar sobre o assunto o eliminaria por completo. Ou seja, a opção pela total passividade. É aquele mesmo que o ator Morgan Freeman expressa num vídeo que, olhem só, quase só vejo brancos compartilharem. Esse argumento é uma completa ignorância da essência do preconceito (que o próprio Freeman sofre, aliás), uma ignorância da lógica relação entre preconceito e opressão, que alguns tentam apagar por conta do suposto “discurso socialista/marxista” que o precede. Não se engane, isso não é um discurso de esquerda, mas um discurso de reconhecimento: o preconceito acontece do opressor em relação ao oprimido, ou seja, do rico contra o pobre, do branco contra o negro, do homem contra a mulher, do hétero contra o homossexual e, sim, do paulista/sulista contra o nordestino. Inverter essa equação é desonesto com a história de opressão desses grupos, e é necessário entender que o preconceito é uma via de mão única e, portanto, só existe um lado praticando preconceito, o do opressor; todo o resto é reação. Por isso que diversos militantes e estudiosos da questão afirmam que falar sobre racismo e qualquer tipo de preconceito é urgente, necessário e imperativo, posto que é uma das únicas formas de diminui-lo. Falar sobre isso envolve educação, não falar só gera o efeito contrário.
Ouvi piadas com a minha ascendência nordestina a vida toda e não tolero que se relativize preconceito, pois é o primeiro passo para a sua normalização. Quem defende o outro lado, em geral, age de má fé, querendo reverter a já desequilibrada balança do preconceito, como se houvesse um “outro lado do preconceito”. Cabe ao lado opressor reconhecer seu lugar e lutar contra isso com todas as suas forças, ao lado de quem sofre, e não relativizar o preconceito como se ele fosse apenas um jogo de futebol. E nós, oprimidos – e sim, a opressão é um FATO, não uma teoria -, quando aceitamos esse discurso, o legitimamos e permitimos a banalização da violência. Porque preconceito é violência, e ela tem que ser combatida o tempo todo.


A História



João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque
Fonte: Wikipedia
Ainda falando da minha ascendência, não sei se todos conhecem a história de João Pessoa, o homem que deu o nome à capital paraibana. Ele era um político importante da famosa época da República do Café-com-Leite, que rejeitou a opção feita por Julio Prestes para próximo presidente do país. O fato é que, segundo o rodízio que as oligarquias sustentavam, sempre um mineiro sucederia um paulista no governo, mas São Paulo quebrou esse rodízio. Essa política foi uma das principais responsáveis pelas diferenças entre Sudeste e Nordeste. 
Se você não lembra das aulas de História, cito a Wikipedia:



Ao manter para si a riqueza gerada pelas exportações, São Paulo, mais ainda que Minas Gerais, investiu fortemente em sua infra-estrutura e em seu próprio mercado. Criou, desta forma, um crescimento artificializado – segundo alguns analistas – ao contratar enorme dívida para manter o alto nível de exportações, São Paulo, portanto, financiava seu próprio sucesso através de empréstimos, depois pagos pelo Governo Federal por Getúlio Vargas. Sua infra-estrutura foi durante o período imensamente melhorada. O mesmo não ocorreu com outros estados, especialmente no Nordeste, ainda mais empobrecidos devido, não somente a sua falta de adaptação ao sistema capitalista do século XX, mas, também, à fraca distribuição de recursos por parte do Governo Federal.4 Assim, passaram a fornecer migrantes para o estado de São Paulo e outros da região Sudeste.
Tudo isso somado à grande e rápida concentração populacional explica as posições de destaque que Minas Gerais e São Paulo hoje possuem entre os estados brasileiros.

Pois bem, esse rodízio acabou quando o presidente paulista Washington Luiz apoiou a candidatura do também paulista Júlio Prestes, o que afrontava os mineiros. Minas aliou-se então à Paraíba de João Pessoa e ao Rio Grande do Sul, lançando o gaúcho Getúlio Vargas como candidato à presidência. O grupo formou a chamada Aliança Liberal, que gerou grande revolta nos paulistas. Em discurso na tribuna do Senado do Congresso Legislativo do Estado de São Paulo, em 24 de setembro de 1929, o senador estadual de São Paulo Cândido Nanzianzeno Nogueira da Mota disse essas palavras:

“A guerra anunciada pela chamada Aliança Liberal não é contra o sr. Júlio Prestes, É contra nosso Estado de São Paulo, e isso não é de hoje. A imperecível inveja contra o nosso deslumbrante progresso que deveria ser motivo de orgulho para todo o Brasil. Em vez de nos agradecerem e apertarem em fraternos amplexos, nos cobrem de injúrias e nos ameaçam com ponta de lanças e patas de cavalo!”
Cândido Mota citou ainda o senador fluminense Irineu Machado que previra a reação de São Paulo:

“A reação contra a candidatura do Dr. Júlio Prestes representa não um gesto contra o presidente do estado, mas uma reação contra São Paulo, que se levantará porque isto significa um gesto de legítima defesa de seus próprios interesses!”

Apesar da disputa, não houve pleito. No dia 26 de julho de 1930, João Pessoa foi assassinado por João Dantas, em Recife, o que foi o estopim para a mobilização armada, a chamada Revolução de 30, que depôs o governo e instituiu a ditadura de Getúlio Vargas. A capital da Paraíba ganhou o nome do político e bandeira paraibana traz, hoje, em grandes letras brancas, a palavra NEGO, que se refere ao verbo “negar”. O telegrama em que a homenagem da bandeira se baseia virou um símbolo da recusa de Pessoa a aceitar a imposição do governo de Julio Prestes:

Bandeira da Paraíba. Fonte: Wikipedia.

“Paraíba, 29-julho-1929

Deputado Tavares Cavalcanti:

Reunido o diretório do partido, sob minha presidência política, resolveu unanimemente não apoiar a candidatura do eminente Sr. Júlio Prestes à sucessão presidencial da República. 

Peço comunicar essa solução ao líder da Maioria, em resposta à sua consulta sobre a atitude da Paraíba.

Queira transmitir aos demais membros da bancada essa deliberação do Partido, que conto, todos apoiarão, com a solidariedade sempre assegurada.

Saudações:

João Pessoa, Presidente do Estado da Paraíba.”

O conflito Prestes-Pessoa é muito significativo para mim. Primeiramente por questões pessoais – se Pessoa é paraibano como meus pais, Prestes é paulista de Itapetininga, cidade onde cresci. Mas, mais importante, as palavras do senador Cândido Mota reverberam até hoje. Inveja do progresso, orgulho, defesa dos interesses… o discurso parece similar ao que vemos hoje? Não, não é mera coincidência, como comprovaremos pela sequencia dos eventos.
Durante o governo Vargas, ocorreu a chamada Revolução Constitucionalista de 1932, na qual São Paulo se levantou com o objetivo de derrubar o governo de Vargas e elaborar uma nova Constituição para o Brasil. Em meio aos revoltados, surge um movimento forte pedindo a separação do Brasil. Um dos mais entusiasmados defensores da causa foi o escritor Monteiro Lobato, como deixa claro em um de seus textos, intitulado “A defesa da vitória de São Paulo”:

Após a vitória de São Paulo, na campanha ora empenhada, se faz mistér que seus dirigentes não se deixem embalar pelas ideias sentimentais de brasilidade, irmandade e outras sonoridades.[…] Ou São Paulo desarma a União e arma-se a si próprio, de modo a dirigir doravante a política nacional a seu talento e em seu proveito, ou separa-se.[…] Trata-se de uma guerra de independência disfarçada em guerra constitucionalista…’

Já falei bastante em outro texto sobre Lobato, figura polêmica de nossa história, capaz de ser ao mesmo tempo nosso maior escritor infanto-juvenil e um racista defensor da Klux-Klan. Ele chegou a afirmar, sobre o Brasil: “País de mestiços, onde branco não tem força para organizar um Kux-Klan (sic) é país perdido para altos destinos”(…). A partir daí se vê como o preconceito e o separatismo paulista andam lado a lado.
Apesar de terem sido derrotados, as marcas desse movimento permaneceram fortes no ideário paulista. Comemora-se em 9 de julho o feriado da Revolução, que traz a tona todo o ideal ligado ao pensamento separatista – e racista. É a enaltação da independência paulista, que se orgulha de sua imagem de locomotiva nacional, de seu lema “non ducor, duco“/”Não sou conduzido, conduzo”, estampado no seu brasão. É esse espírito que sempre volta a tona quando os paulistas se sentem ameaçados, como agora, com a reeleição de Dilma Roussef. Agora, paulistas saem às ruas pedindo a queda da presidenta e intervenção militar. Além disso, ouvem-se várias manifestações racistas contra nordestinos – os supostos “culpados” pela reeleição -, e vários pedidos de separação do estado. Nada disso é novidade, faz parte da alma paulista. Você, que me lê, pode pensar “mas eu não sou assim”. Mas lembre-se: reconhecer-se como parte do grupo opressor não te torna automaticamente um agressor, mas te faz ter a dimensão crítica da situação. 

Do facebook do MPSI.
São Paulo não tem água, não tem um bom sistema de transportes, sofre com corrupção e com uma educação cada vez pior e, mesmo assim, se orgulha de ter reeleito o Governador símbolo do partido anti-PT. São Paulo, preconceituoso por excelência, elegeu o PT como um aglutinado de tudo que odeia e rejeita, pois está tudo lá, sejam os nordestinos, na figura de Lula, sejam os movimentos revolucionários, na figura de Dilma. O PT é um amálgama do que São Paulo renega, mesmo que o partido tenha surgido no seio de sua capital, e por isso para o paulista a eleição de Alckmin é um orgulho, mas a de Dilma é uma afronta. Nunca importou quem era Aécio Neves, importava ao paulista que ele era o anti-PT, o símbolo de seu orgulho vazio e de sua impertinência sórdida. Também nunca importou a tal “democracia” ou a “alternância” que eles defendem – se importasse, o estado seria governado por outra pessoa agora. Paulista não gosta de democracia, gosta de mandar, como todo “sinhozinho”. Quando não manda, sobram duas opções: mudança à força ou abandono. Se a mudança não foi conquistada nas urnas, pede-se o impeachment da presidenta e a intervenção do exército, pois desde 32 São Paulo só sabe defender seus interesses na bala – talvez por isso a PM faça tanto sucesso aqui.
O paulista que vocifera contra o Nordeste hoje é da mesma estirpe de Lobato e Mota, é aquele que não consegue ver além dos próprios privilégios e interesses, que acha que todo o país tem uma dívida eterna com ele e que, por isso, quer decidir sozinho os rumos do país. Nem que pra isso crie uma nação de frustrados, um país triste chamado São Paulo. Nesse sentido, concordo com o jornalista Paulo Nogueira, do DCM: antes que seja tarde, o Estado precisa proteger a democracia. São Paulo aparece como ponta de lança de um movimento perigosíssimo, que pode fazer vítimas não apenas o nosso estado democrático, mas pessoas como meus pais, à mercê de tanto preconceito.
Eu, do meu lado, faço como João Pessoa: NEGO.

Monteiro Lobato não era racista. Ele era nazista.

Morreu neste sábado, dia 29, Hebe Camargo. Uma cacetada de homenagens está rolando, mas logo surgem as vozes que, seja pela necessidade fútil de serem do contra ou por um dever de moral de lembrar as pessoas de que todos tem duas caras, dizem que ela não foi essa flor que se cheire. Aliás, quem é né? A dona Hebe era conservadora, muito conservadora. Reacionária politicamente, sempre se disse eleitora de Paulo Maluf. Apoiou a ditadura, participou do abominável movimento Cansei, era dondoca, socialite daquelas mais toscas, símbolo do culto ao luxo e à aparência.
Porém, antes de tudo, ela é uma lenda da tevê. Uma mulher que, por 60 anos, fez parte da vida de todos nós. Que construiu uma carreira sólida, respeitável. O momento de sua morte pode ser de reflexão quanto aos seus defeitos, mas não deve ser um momento de crucificar a figura histórica, cuja relação com a tevê é indissociável e que, dentre outras coisas que a fazem um ser a ser admirado e respeitado. Mas não se deve ignorar a presença política dela, as máculas.

Todo dia tem uma postagem/montagem/carta/mensagem, o caralho a quatro no meu facebook reclamando da possível censura a Monteiro Lobato pelo conteúdo racista de seus escritos. E fico abismado como, mesmo amigos de universidade (e eu fiz Letras, veja bem) compartilham a ideia esdrúxula de que, por algum motivo que o cosmos não explica, Monteiro Lobato não era racista.
Ele era. Racista, conservador, higienista e flertava amigavelmente com o nazismo… e o fazia abertamente!

uma matéria extremamente elucidativa da Bravo que deixa bem claras as aspirações do suposto grande escritor infantil brasileiro. Mas é no próprio texto de sua obra mais famosa, a série sobre o Sítio do Pica-pau Amarelo, que encontramos muito de seu racismo:

“Sim, era o único jeito – e Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima, com tal agilidade que parecia nunca ter feito outra coisa na vida senão trepar em mastros.”

Eu não sei em que planeta você vive, mas chamar uma pessoa negra de “macaca de carvão” e, de tal modo, dizer que subia em árvores “com tal agilidade que parecia nunca ter feito outra coisa na vida senão trepar em mastros” me parece algo muito, mas muito racista.
Qual o problema, então, que temos com a possível censura desse tipo de conteúdo?
A meu ver, dois:
Com medo de verem maculada a sua própria infância, de verem retirada dela a aura de pureza e inocência que lhe é conferida, as pessoas reagem com violência. “Como, em sã consciência, podem dizer que o livro que me formou é racista?” pergunta o abismado leitor, que desde cedo foi condicionado a compactuar com os ditames dogmáticos da educação nacional, que impôs que o Monteiro Lobato era o único escritor infantil relevante e, assim, o fundamental para educar as crianças. Isso passou pelas ditaduras, foi crivado pela série da Globo e defendido por várias gerações sem que houvesse uma sequer revisão do texto de Lobato.
A segunda questão é aquela mais grave, que aparece todo dia pra quem tem olhos pra enxergar: o brasileiro não se enxerga racista. Ele acha que apontar o dedo e dizer “ei, isso foi racista” é se render ao discurso fácil do politicamente correto, e que isso tolhe sua liberdade de opinião. Isso é corroborado pela miríade de “pensadores” que hoje defendem que “politicamente correto” é sinônimo de “censura”, e que não vêem numa piada com uma mulher no volante algo machista. Acham que isso é exagero. Esses se proliferam de maneira assombrosa, sempre citando Olavo de Carvalho, Pondé e Reinaldo Azevedo como mentores. Daí, quando sai um livro que diz claramente “Não somos racistas”, como o do Ali Kamel, as pessoas dizem amém em prol do conforto da alma.
As mesmas pessoas acham que o sistema de cotas está “empobrecendo” o pensamento dentro da universidade. Acham que os donos de terras tem o “direito” de defender suas propriedades custe o que custar dos índios selvagens. Não acham uma piada sobre estupro algo machista.
Em suma: não são negros, nunca foram revistadas, não apanharam de polícia.
Conquistamos um espaço importante de debate e estamos cada vez mais percebendo aqueles lugares sociais onde certos preconceitos se desenvolviam. Só que, se as pessoas não entendem a diferença entre o politicamente correto e a censura, se elas acham que chamar alguém de preto ou fazer piada com estupro não é preconceito, fica difícil andar pra frente. E uma das coisas mais importantes para aprendermos a avançar nesses campos é, justamente, aprender a rever o passado com olhos críticos. Vivemos em uma sociedade que não sabe lidar com suas conquistas, essa é a verdade.
Quando criticado por ser racista, Monteiro virou baluarte da luta contra a censura. Sério, isso é, em bom inglês, BULLSHIT!! Não há argumentos que valham para defender alguém capaz de escrever as seguintes palavras:
“País de mestiços, onde branco não tem força para organizar um Kux-Klan (sic) é país perdido para altos destinos”(..)
“Nos Estados Unidos, a eugenia está tão adiantada que já começam a aparecer ‘filhos eugênicos’. Uma senhora da alta sociedade meses atrás ocupou durante vários dias a front page [primeira página] dos jornais mexeriqueiros graças à audácia com que, rompendo contra todos os preceitos da ciência e sem se ligar legalmente a nenhum homem, escolheu um admirável tipo macho, fê-lo estudar sobre todos os aspectos e, achando-o fit [adequado] para o fim que tinha em vista, fez-se fecundar por ele. Disso resultou uma menina que está sendo criada numa farm [fazenda] especialmente adaptada para nursery [creche] eugênica. E lá vai ela conduzindo a sua experiência de ouvidos fechados a todas as censuras da bigotry [fanatismo]”.
Chama a atenção não apenas a defesa da Kux-Klan (e se você não sabe o que é isso, nem tem como comentar nada sobre racismo) mas, como a própria matéria da Bravo explica, a prática apresentada e defendida por Lobato foi usada na Alemanha nazista, sob o nome de Lebensborn.
E eu te pergunto, caro Lobatiano: você gostaria que seu filho lesse um livro escrito por um defensor de ideias nazistas. 
Conformar-se com o discurso de que não se deve censurar “uma obra literária” e que há uma perseguição contra o Monteiro é aceitar o racismo, simples assim. Essa história toda é conversa pra boi dormir. Mas, tanto insistem nisso, que até já tem petição pública contra o julgamento, com um texto que me envergonha de tão tendencioso e equivocado.
Permitam-nos dizer o que pode ser óbvio: a construção de personagens em obras ficcionais se faz muitas vezes por meio de estereótipos. Arriscamos dizer que toda obra cômica faz isso. E também que boa parte dos personagens secundários, de obras boas e ruins, são construídos por meio de estereótipos, porque são personagens planos, sem densidade, apresentados por meio de poucos elementos, de traços rápidos. Estereótipos não são um elemento negativo de uma obra. São, sim, elemento constitutivo da produção ficcional. Cremos que os responsáveis pelo PNBE também pensem assim e por isso tenham selecionado (nas diferentes edições do programa) obras que contêm, sim, personagens construídas por meio de estereótipos, sem que isso signifique demérito para as obras, nem tampouco flexibilidade no julgamento da equipe que seleciona os livros.
E desde quando nós devemos aceitar que esteriótipos como “negro é macaco” sejam promulgados apenas porque a literatura é feita de personagens planas? Eu não sei como, em sã consciência, pessoas podem defender isso. E tem mais merda de onde saiu essa:
Uma certa leitura do edital (a que fizeram os reclamantes) entende que não poderia ser adquirida pelo programa nenhuma obra que contivesse qualquer moralismo ou estereótipo, ou que apresentasse, em sua trama, qualquer ideia racista, preconceituosa, qualquer violência, qualquer forma de discriminação. Por essa leitura, estariam excluídos todos os contos de fadas, por serem violentos e moralistas. Todas as fábulas: moralistas e dogmáticas. As cartas de viajantes e sermões de jesuítas: dogmáticos, política e religiosamente interessados. Estariam excluídas todas as obras realistas, porque, para denunciarem problemas sociais (dentre os quais diferentes formas de discriminação), elas antes os apresentam. Estariam excluídas todas as obras românticas, por apresentarem “estereótipos saturados” (outro termo do mesmo edital). Gregório de Matos, José de Alencar, Visconde de Taunay, Machado de Assis, Aluísio Azevedo, Euclides da Cunha, Lima Barreto, Mário de Andrade, Erico Verissimo, Antônio Callado, Rubem Fonseca, a lista é extensa. Não ficaria um autor em pé. Infelizmente, parece-nos que a compreensão estrita do edital permite essa interpretação.
Eu não sei de quem é a autoria desse texto, mas aplaudo o seu conhecimento de literatura. Você foi capaz de confundir “incitação ao racismo” com “denúncia”. Foi capaz de dar a mesma leitura para um conto de fadas popular e obras religiosas de jesuítas! Literatura agora é tudo isso aí, sempre no mesmo pé de igualdade e sem nenhuma implicação histórica, política ou social. É um ente isolado do tempo e do espaço, pois se a literatura de catequese dos jesuítas não é preconceituosa, não massacrou culturas, não subjugou a consciência de um outro povo, eu nada sei de cultura e sociedade.
O mesmo Lobato, que eu me lembre, não é aquele que destruiu a Anita Malfatti com seu clássico artigo “Paranóia ou mistificação – A propósito da exposição Malfatti”. Não, nessa hora vão ficar todos do lado da Anita, claro! Porque só se é conservador quando interessa, né?
Eu, do meu lado, não vejo distância alguma entre o autor das frases racista que citei e do texto contra Anita. Basta-nos ler a pérola famosa nos livros escolares e que coroa a mentalidade “progressista” do Sr. Lobato:
“Sejamos sinceros: futurismo, cubismo, impressionismo e tutti quanti não passam de outros tantos ramos da arte caricatural. (…) Caricatura da cor, caricatura da forma – caricatura que não visa, como a primitiva, ressaltar uma idéia cômica, mas sim desnortear, aparvalhar o espectador.”
Esse mesmo monteiro que chama Anastácia de macaca foi quem criou Jeca Tatu, o caipira preguiçoso. Ele, anos depois, se desculpou pela criação, mas sabemos que o preconceito – ou esteriótipo, como querem os “doutos” em literatura – permanece, é reproduzido e promulgado em personagens de comédia, em ofensas contra pessoas do campo, em maus tratos contra empregados de grandes latifundiários, etc. Esse Monteiro não é, a meu ver, inocente autor de histórias infantis… ele é mais que racista: é nazista, higienista. É a esse monteiro que a justiça esta direcionando seu julgamento.
 
“Mas Fábio”, perguntará um possível leitor, “você é então a favor de que se retirem os livros do Monteiro Lobato de circulação?” 
Eu não sou a favor de censura. Mas também não sou a favor de que não se faça nada.
Sou da mesma opinião de Willian Vieira, em artigo excepcional na Carta Capítal, sobre o mesmo assunto. Racismo não pode mais ser velado: tem que ser exposto, discutido, debatido. Melhor idade para isso é, justamente, na infância, não? Nada melhor do que usar as ofensas de Lobato para conscientizar e desenvolver um senso crítico nas crianças que o lerão apenas como um guia moral. Porque esse é o meu maior problema com Lobato: defendem-no como literatura, mas o tratam em sala de aula e na sociedade como educador, formador de caráteres e moralidades. Logo, se vamos aplicá-lo aos nossos pequenos como um educador, então que os eduquemos em primeiro lugar acerca do momento histórico que ele faz parte, da Ku-Klux-Klan, do racismo em sala de aula, etc. Não é preciso esperar que o pequeno chame o coleguinha de “tiziu” pra que tomemos uma atitude. Não podemos esperar pra tratar de temas polêmicos como esse apenas quando ele já tiver seus 14, 15 anos e já estiver promovendo e reproduzindo os mesmos preconceitos de gerações.
“E por que você citou a Hebe Camargo ao começo do texto?”

Porque ela era malufista, dondoca e reacionária. Quando olharmos para trás, devemos lembrar sempre desses traços. Mas não deve-se, nunca, esquecer da figura eminente que construiu a tevê brasileira e esteve na vida de todos por longos anos.
Não se apaga o passado, mas sim se revê o passado. E pior leitor que aquele impedido de ler, será aquele que ler e, mesmo assim, der as costas pra história. Ao invés de formarmos leitores alienados, vamos ter senso crítico pra formar leitores críticos também.
Pois, se ideias como as de Lobato vingassem, não existiriam nem negros no país para que se discutisse racismo.