Como muitos de meus amigos, especialmente aqueles que como eu fizeram Letras e se dedicam à educação, uma fala que despreza o ensino de literatura me causa um primeiro impacto negativo. Afinal de contas, é um sentimento ruim ver alguém de fora de seu universo, que não estudou ou trabalha com isso, sair falando achismos como se fossem conhecimento sedimentado sobre um assunto. Não digo que eu deva por meu doutorado em Teoria Literária na frente da cara, pedindo respeito – só se eu for um tosco – mas é fato que é impressionante como não se questiona o cientista da área de biológicas mas o estudioso de literatura ninguém nem consulta.
Quando li, porém, o que Felipe Neto escreveu, meu primeiro movimento foi “cara, pior que eu concordo em parte”.
Antes de expor o que realmente eu quero dizer com isso, eu preciso primeiro deixar claras algumas questões mais objetivas, e para isso eu vou partir de um exemplo.
Eu sempre tive imensa dificuldade com a obra de José de Alencar. Por mais que eu fosse um leitor interessado, que lia desde o Camões até o Mario de Andrade, e enfrentava toda linguagem na literatura com muito esforço, na minha adolescência, o José de Alencar era uma barreira. Ler qualquer coisa dele me deixava cansado, entediado, perdido mesmo. Eu achava que era a extensão das obras que me cansava, mas quando me deparei com esse sentimento foi lendo Iracema.
O tempo passou e fui para a faculdade de Letras. Achei que as Letras iam me fazer mudar minha perspectiva sobre algumas coisas e, no caso, fizeram em relação a várias obras. Eu tinha ojeriza à Clarice Lispector, e aprendi a apreciá-la apenas depois de alguns anos de curso. Porém, não apenas eu não consegui “aprender” a gostar de José de Alencar, como desenvolvi toda uma nova rejeição a outro importante autor da literatura brasileira: João Cabral de Melo Neto. E, nesse caso, foi mais curioso, porque eu amava – e ainda amo – o Morte e Vida Severina. Só que eu não conhecia o resto da obra dele, e quando me deparei com seus poemas neoconcretos eu simplesmente achei a coisa mais tosca que eu já tinha lido. Não ajudava professores universitários repetirem incessantemente como a obra dele era essencial, analisarem em detalhes e profundidade cada linha, cada figura de linguagem, a sensação era sempre a mesma: eu não sei porque tenho que estudar essa obra fria e sem graça.
Na mesma época, eu estava lendo pela primeira vez duas coisas que mudaram muito minha vida: Senhor dos Anéis, de Tolkien, e Ilíada e Odisseia, de Homero. Meu interesse por essas obras vem desde o fundamental, porque eu sempre gostei de coisas épicas e de tudo que envolvia mitologia e fantasia. E se eu for voltar no tempo, consigo me lembrar que uma obra me fez sentir um imenso fascínio pela mitologia grega e me levou a, algum tempo depois, me apaixonar pelo que tinha de mitologia nos Lusíadas: Cavaleiros do Zodíaco.
Não, não foi Monteiro Lobato, porque nunca me despertou tanto interesse o Sítio do Picapau Amarelo.
Gostava, mas meu interesse na época em que era público alvo do trabalho do Lobato era outro. Eu sou de uma das primeiras gerações da popularização de video-games e animes, que cresceu vendo Jaspion. Meu interesse estava em histórias de aventura, e eu encontrava o que queria nessas obras. Eu sempre amei pirataria, por exemplo, e a primeira obra literária que li na infância sem o estímulo da escola foi A Ilha do Tesouro, de Robert Louis Stevenson, que minha mãe tinha em uma coleção de obras de literatura de aventura do século XIX. Até hoje, depois de anos, a leitura de Stevenson é o que eu considero a minha porta de entrada para a literatura em geral, especialmente para o romance. Não foi a coleção vagalume, não foi Lobato.
A poesia, por outro lado, entrou na minha vida quando eu ouvi pela primeira vez, no Castelo Rá-Tim-Bum, a recitação de “A Bolha” de Cecília Meireles, e fui procurar e devorar o Ou Isto ou Aquilo. Até hoje a Cecília é uma de minhas poetas favoritas, e quando descobri o resto de sua poesia, ao contrário de Cabral, me apaixonei mais ainda. Posso dizer, contudo, que se ela abriu as portas, quem expandiu essa minha leitura de poesia foram os sonetos camonianos. E, anos depois, o Pessoa, mas acho que ele eu realmente fui mergulhar na faculdade, a ponto de até desenvolver pesquisa (inacabada) sobre sua obra).
Todo esse histórico serve para, voltando ao mote, levar a uma reflexão que eu acho que deveria ser a de qualquer pessoa que se dedica de verdade à educação: como EU era quando aluno, e como hoje são os meus alunos? Eu não vim de uma família com muitas condições financeiras, mas tinha livros em casa. Muitos de meus alunos não têm. De qualquer modo, eu tenho uma relação muito intensa com eles que, em geral, muitos colegas de literatura não têm, por ser dessa geração “nerd” que curte desde sempre quadrinhos, games e animes, e por nunca ter encarado essas obras como algo menor. E aí vem, a meu ver, o ponto crucial da fala do Felipe Neto: o cânone literário.
Há uma insistência em pensar a literatura escolar apenas e tão somente a partir do cânone, e de ignorar suas limitações e algumas questões bastante complexas envolvendo as obras que dele fazem parte. Eu comecei esse texto falando, por exemplo de José de Alencar, um autor inegavelmente canônico. Por que, no entanto, continuamos a ler Iracema? Eu, com toda a franqueza, não consigo achar ainda razão para Iracema não ser tratada apenas como um marco histórico da literatura, e dar espaço para obras de outras personagens mais interessantes. Iracema é uma obra preconceituosa, seja com a mulher, seja com o indígena, e mesmo que você possa dizer algo sobre o contexto de sua produção, a maioria de nós não o faz. A maioria, enquanto docentes, apenas apresenta a obra e sua relevância, pede para os alunos lerem sem nenhum senso crítico e apontarem as características do romantismo na obra. Alencar produziu uma obra ruim, que se destaca apenas pelo tom poético e por ele ser uma figura respeitada pelas elites cariocas (como vários outros que são parte do cânone) e pelo próprio Machado de Assis. Eu inclusive levei essa minha crítica para um curso que fiz de literatura feminina junto ao Centro Paula Souza, e fiquei surpreso com quantos docentes concordavam plenamente com a minha leitura. Levantei a bola dele nesse curso, aliás, porque creio que há autoras no século XIX, no romantismo, que podem substituir a leitura de José de Alencar em sala de aula e estabelecer uma conexão mais forte com os alunos nesse sentido. Então por que ainda lemos José de Alencar? Porque nossos estudiosos, professores universitários e as grades curriculares que vivemos a criticar nos obrigam? Eu, se quiser falar de índio em sala de aula, vou atrás de Daniel Munduruku.
Entendem porque um cara cresce e segue achando que romantismo e realismo é um porre? Temos uma das gerações de adolescentes mais antenadas e críticas de toda história, mas muita gente os menospreza porque o moleque “ouve funk” e não Chico Buarque. Só que você fala da obra do Chico de forma crítica? Mostra como ele se encaixa não apenas no cânone, mas na cultura brasileira?
Amigão que acha que o Felipe Neto falou porcaria: cê já tentou levar rap pra sala de aula? Já tentou dar uma aula de literatura falando de personagem partindo de filmes que eles curtem – eu faço isso com Vingadores e até transformei essa aula num artigo? Já tentou olhar pro que seu aluno ouve, o que ele veste, o que ele consome, sem preconceito? Porque é muito tosco pensar que, como eu preferia ler as milhares de páginas de Senhor dos Anéis ao invés de Iracema, o aluno de hoje prefere ler as milhares de páginas de Guerra dos Tronos ao invés de… Iracema.
Então é aquela coisa: precisa tirar o Machado do Ensino? Claro que não. Mas a gente precisa, e com URGÊNCIA, rever como a literatura é dada e o que nós chamamos de cânone. Machado é um autor que sempre conquista meus alunos, porque eu começo a falar dele pelos contos, e não tem um moleque que não ache sinistro “A causa secreta”. Daí vem o debate, a comparação com filmes de terror, a questão da reflexão sobre a sociedade, sobre a medicina. Aula de literatura é isso. O que a gente faz, porém, é aula de HISTÓRIA da literatura, e a gente fica só reproduzindo e reproduzindo os mesmos conceitos a fim de cumprir metas e tal. E neles vem a reprodução dos PREconceitos com o resto da literatura, a cultura de massa e a arte fora do cânone. A gente esquece que o cânone literário é uma criação burguesa, que é uma coisa elitizada. A gente esquece da montanha de gente excluída do ensino regular, e que hoje estamos enfiando a força na grade, por esforço de movimento negro, feministas e LGBTQ. Hoje o moleque vai ver a Conceição Evaristo e o Luiz Gama na minha aula, mas vai me ver abrir espaço pra debater a sexualidade do Riobaldo no Guimarães e o feminismo na Clarice? A gente continua dando aula sobre as mesmas obras que lemos, do mesmo jeito, sob as mesmas perspectivas, esperando que alunos de 2021 tenham os mesmos interesses que eu tinha em 1994.
Aliás, eu tinha interesse em Cavaleiros do Zodíaco nessa época. E eles, hoje, tem em Boku no Hero e Jojo. E eu me comunico com eles por aí.
Bora então refletir mais sobre o que o Felipe Neto disse? Bora tentar arranjar estratégias de ensino mais adequadas ao público que a gente trabalha, sem ser tradicionalista – mas sem aderir aos modelos fajutos da escola capitalista, claro. Bora mexer no cânone?
Professores de literatura: bora ser ousados?