FELIPE NETO NÃO ESTÁ CERTO… E TAMBÉM NÃO ESTÁ ERRADO

Como muitos de meus amigos, especialmente aqueles que como eu fizeram Letras e se dedicam à educação, uma fala que despreza o ensino de literatura me causa um primeiro impacto negativo. Afinal de contas, é um sentimento ruim ver alguém de fora de seu universo, que não estudou ou trabalha com isso, sair falando achismos como se fossem conhecimento sedimentado sobre um assunto. Não digo que eu deva por meu doutorado em Teoria Literária na frente da cara, pedindo respeito – só se eu for um tosco – mas é fato que é impressionante como não se questiona o cientista da área de biológicas mas o estudioso de literatura ninguém nem consulta.


Quando li, porém, o que Felipe Neto escreveu, meu primeiro movimento foi “cara, pior que eu concordo em parte”.
Antes de expor o que realmente eu quero dizer com isso, eu preciso primeiro deixar claras algumas questões mais objetivas, e para isso eu vou partir de um exemplo.
Eu sempre tive imensa dificuldade com a obra de José de Alencar. Por mais que eu fosse um leitor interessado, que lia desde o Camões até o Mario de Andrade, e enfrentava toda linguagem na literatura com muito esforço, na minha adolescência, o José de Alencar era uma barreira. Ler qualquer coisa dele me deixava cansado, entediado, perdido mesmo. Eu achava que era a extensão das obras que me cansava, mas quando me deparei com esse sentimento foi lendo Iracema.

José Maria de Medeiros (1849–1925) – “Iracema”


O tempo passou e fui para a faculdade de Letras. Achei que as Letras iam me fazer mudar minha perspectiva sobre algumas coisas e, no caso, fizeram em relação a várias obras. Eu tinha ojeriza à Clarice Lispector, e aprendi a apreciá-la apenas depois de alguns anos de curso. Porém, não apenas eu não consegui “aprender” a gostar de José de Alencar, como desenvolvi toda uma nova rejeição a outro importante autor da literatura brasileira: João Cabral de Melo Neto. E, nesse caso, foi mais curioso, porque eu amava – e ainda amo – o Morte e Vida Severina. Só que eu não conhecia o resto da obra dele, e quando me deparei com seus poemas neoconcretos eu simplesmente achei a coisa mais tosca que eu já tinha lido. Não ajudava professores universitários repetirem incessantemente como a obra dele era essencial, analisarem em detalhes e profundidade cada linha, cada figura de linguagem, a sensação era sempre a mesma: eu não sei porque tenho que estudar essa obra fria e sem graça.
Na mesma época, eu estava lendo pela primeira vez duas coisas que mudaram muito minha vida: Senhor dos Anéis, de Tolkien, e Ilíada e Odisseia, de Homero. Meu interesse por essas obras vem desde o fundamental, porque eu sempre gostei de coisas épicas e de tudo que envolvia mitologia e fantasia. E se eu for voltar no tempo, consigo me lembrar que uma obra me fez sentir um imenso fascínio pela mitologia grega e me levou a, algum tempo depois, me apaixonar pelo que tinha de mitologia nos Lusíadas: Cavaleiros do Zodíaco.
Não, não foi Monteiro Lobato, porque nunca me despertou tanto interesse o Sítio do Picapau Amarelo.

Gostava, mas meu interesse na época em que era público alvo do trabalho do Lobato era outro. Eu sou de uma das primeiras gerações da popularização de video-games e animes, que cresceu vendo Jaspion. Meu interesse estava em histórias de aventura, e eu encontrava o que queria nessas obras. Eu sempre amei pirataria, por exemplo, e a primeira obra literária que li na infância sem o estímulo da escola foi A Ilha do Tesouro, de Robert Louis Stevenson, que minha mãe tinha em uma coleção de obras de literatura de aventura do século XIX. Até hoje, depois de anos, a leitura de Stevenson é o que eu considero a minha porta de entrada para a literatura em geral, especialmente para o romance. Não foi a coleção vagalume, não foi Lobato.

Precisa de Legenda?


A poesia, por outro lado, entrou na minha vida quando eu ouvi pela primeira vez, no Castelo Rá-Tim-Bum, a recitação de “A Bolha” de Cecília Meireles, e fui procurar e devorar o Ou Isto ou Aquilo. Até hoje a Cecília é uma de minhas poetas favoritas, e quando descobri o resto de sua poesia, ao contrário de Cabral, me apaixonei mais ainda. Posso dizer, contudo, que se ela abriu as portas, quem expandiu essa minha leitura de poesia foram os sonetos camonianos. E, anos depois, o Pessoa, mas acho que ele eu realmente fui mergulhar na faculdade, a ponto de até desenvolver pesquisa (inacabada) sobre sua obra).
Todo esse histórico serve para, voltando ao mote, levar a uma reflexão que eu acho que deveria ser a de qualquer pessoa que se dedica de verdade à educação: como EU era quando aluno, e como hoje são os meus alunos? Eu não vim de uma família com muitas condições financeiras, mas tinha livros em casa. Muitos de meus alunos não têm. De qualquer modo, eu tenho uma relação muito intensa com eles que, em geral, muitos colegas de literatura não têm, por ser dessa geração “nerd” que curte desde sempre quadrinhos, games e animes, e por nunca ter encarado essas obras como algo menor. E aí vem, a meu ver, o ponto crucial da fala do Felipe Neto: o cânone literário.
Há uma insistência em pensar a literatura escolar apenas e tão somente a partir do cânone, e de ignorar suas limitações e algumas questões bastante complexas envolvendo as obras que dele fazem parte. Eu comecei esse texto falando, por exemplo de José de Alencar, um autor inegavelmente canônico. Por que, no entanto, continuamos a ler Iracema? Eu, com toda a franqueza, não consigo achar ainda razão para Iracema não ser tratada apenas como um marco histórico da literatura, e dar espaço para obras de outras personagens mais interessantes. Iracema é uma obra preconceituosa, seja com a mulher, seja com o indígena, e mesmo que você possa dizer algo sobre o contexto de sua produção, a maioria de nós não o faz. A maioria, enquanto docentes, apenas apresenta a obra e sua relevância, pede para os alunos lerem sem nenhum senso crítico e apontarem as características do romantismo na obra. Alencar produziu uma obra ruim, que se destaca apenas pelo tom poético e por ele ser uma figura respeitada pelas elites cariocas (como vários outros que são parte do cânone) e pelo próprio Machado de Assis. Eu inclusive levei essa minha crítica para um curso que fiz de literatura feminina junto ao Centro Paula Souza, e fiquei surpreso com quantos docentes concordavam plenamente com a minha leitura. Levantei a bola dele nesse curso, aliás, porque creio que há autoras no século XIX, no romantismo, que podem substituir a leitura de José de Alencar em sala de aula e estabelecer uma conexão mais forte com os alunos nesse sentido. Então por que ainda lemos José de Alencar? Porque nossos estudiosos, professores universitários e as grades curriculares que vivemos a criticar nos obrigam? Eu, se quiser falar de índio em sala de aula, vou atrás de Daniel Munduruku.

Destaques do cânone literário escolar brasileiro: quatro mulheres, uma pessoa negra.

Entendem porque um cara cresce e segue achando que romantismo e realismo é um porre? Temos uma das gerações de adolescentes mais antenadas e críticas de toda história, mas muita gente os menospreza porque o moleque “ouve funk” e não Chico Buarque. Só que você fala da obra do Chico de forma crítica? Mostra como ele se encaixa não apenas no cânone, mas na cultura brasileira?
Amigão que acha que o Felipe Neto falou porcaria: cê já tentou levar rap pra sala de aula? Já tentou dar uma aula de literatura falando de personagem partindo de filmes que eles curtem – eu faço isso com Vingadores e até transformei essa aula num artigo? Já tentou olhar pro que seu aluno ouve, o que ele veste, o que ele consome, sem preconceito? Porque é muito tosco pensar que, como eu preferia ler as milhares de páginas de Senhor dos Anéis ao invés de Iracema, o aluno de hoje prefere ler as milhares de páginas de Guerra dos Tronos ao invés de… Iracema.
Então é aquela coisa: precisa tirar o Machado do Ensino? Claro que não. Mas a gente precisa, e com URGÊNCIA, rever como a literatura é dada e o que nós chamamos de cânone. Machado é um autor que sempre conquista meus alunos, porque eu começo a falar dele pelos contos, e não tem um moleque que não ache sinistro “A causa secreta”. Daí vem o debate, a comparação com filmes de terror, a questão da reflexão sobre a sociedade, sobre a medicina. Aula de literatura é isso. O que a gente faz, porém, é aula de HISTÓRIA da literatura, e a gente fica só reproduzindo e reproduzindo os mesmos conceitos a fim de cumprir metas e tal. E neles vem a reprodução dos PREconceitos com o resto da literatura, a cultura de massa e a arte fora do cânone. A gente esquece que o cânone literário é uma criação burguesa, que é uma coisa elitizada. A gente esquece da montanha de gente excluída do ensino regular, e que hoje estamos enfiando a força na grade, por esforço de movimento negro, feministas e LGBTQ. Hoje o moleque vai ver a Conceição Evaristo e o Luiz Gama na minha aula, mas vai me ver abrir espaço pra debater a sexualidade do Riobaldo no Guimarães e o feminismo na Clarice? A gente continua dando aula sobre as mesmas obras que lemos, do mesmo jeito, sob as mesmas perspectivas, esperando que alunos de 2021 tenham os mesmos interesses que eu tinha em 1994.
Aliás, eu tinha interesse em Cavaleiros do Zodíaco nessa época. E eles, hoje, tem em Boku no Hero e Jojo. E eu me comunico com eles por aí.
Bora então refletir mais sobre o que o Felipe Neto disse? Bora tentar arranjar estratégias de ensino mais adequadas ao público que a gente trabalha, sem ser tradicionalista – mas sem aderir aos modelos fajutos da escola capitalista, claro. Bora mexer no cânone?
Professores de literatura: bora ser ousados?

O DIA DOS PROFESSORES MAIS TRISTE DA MINHA VIDA

Hoje, milhares de colegas do Centro Paula Souza estão dando aula.
Mas não é dia do professor?
Uma decisão do Governador do Estado de São Paulo mudou o feriado para amanhã, sexta-feira, para todo o ensino público. E, segundo ele, é uma “homenagem” aos professores que não pararam durante a pandemia.


Eu preferia que o respeito a minha classe viesse na forma de melhores salários, melhores condições de trabalho e outras demandas de décadas da nossa classe.
Mas, enfim, feliz dia do professor!
…vão dizer os gestores, o governador, o presidente e todo e qualquer hipócrita que adora usar esse tipo de data para limpar a sua cara da sujeira que acaba com nossa classe. Vão fazer frases de efeito, poeminhas, imagens fofas. Vão repetir ladainhas vazias de sentido sobre o amor à profissão, sobre sermos os responsáveis por todas as profissões. Vão falar mentiras, como aquela clássica do imperador japonês.
Por mim, podem enfiar seus parabéns lá.
Estamos há mais de seis meses trabalhando em meio a uma pandemia em condições absolutamente precárias. Os direitos que já nos eram negados, como o piso salarial decente, os aumentos, evolução e as bonificações, não apenas não foram nos entregues como quase cancelados, se não fosse a ação dos sindicatos.
Ao invés de ter o mínimo de bom senso e aceitar que era impossível seguir com o ano letivo, inventaram de nos colocar sob um regime de aulas online usando sistemas terríveis, que ao invés de ajudar, atrapalham todo nosso trabalho. Os colegas professores do Estado nem aula podem dar, são obrigados a repassar um material porco que o Dória encomendou, e que não resolve nada. Eu, como professor de ETEC, tive ainda a liberdade de preparar as minhas aulas e fazer meu próprio material. Só que também fui obrigado a comprar um computador novo, um tripé para filmar as aulas, gastar muito mais energia em casa do que o normal para ficar online e realocar os espaços de casa para as aulas funcionarem minimamente.
Além, é claro, da porcaria do Teams.
Ter que aprender a usar uma plataforma de ensino medonha que, depois, não vai servir pra nada é uma das coisas mais ridículas que tivemos que fazer nessa pandemia. No nosso caso da ETEC, a plataforma é o tal Microsoft Teams, que não foi feito para ser um instrumento educacional, mas uma ferramenta agregadora de aplicativos para reuniões e gestão empresarial. Como os energúmenos que comandam a nossa educação, desde o presidente e o governador, até os Secretários e Superintendes das instituições de ensino, são todos um bando de babacas capitalistas viciados no discursinho empreendedor e filhotes do neoliberalismo, pra eles tá tudo indo às mil maravilhas! Mas a realidade é que o Teams trava, é difícil de usar, pouco intuitivo e vez ou outra até some com nossas atividades do nada! Suas reuniões online são instáveis, ele não funciona em muitos aparelhos celulares (mais de um aluno não consegue me entregar atividades porque não consegue acessar o bendito do Teams), e nem em muitos computadores – na minha primeira semana de acesso tive que optar por usá-lo no navegador ao invés do aplicativo, porque este simplesmente não dava conta do trabalho. As reclamações sobre o mal funcionamento entram por um ouvido da gestão e saem pelo outro, e muitas vezes ficamos parecendo bolas de pingue-pongue, sendo jogados da manutenção do Teams para a assistência técnica da escola em busca de uma solução. E ai de você se quiser usar outra plataforma para garantir o contato com os alunos! É OBRIGATÓRIO que tudo seja feito pelo Teams, porque nele a ETEC pode MONITORAR nosso trabalho. E, claro, entregar nossos dados para empresas multinacionais. Vocês acham isso correto? Eu não poder mandar um trabalho para meu aluno via Whatsapp porque a plataforma institucional escolhida para as “aulas remotas” é a da Microsoft?
Nem preciso falar que uma escola técnica não precisaria pagar por um produto desses, e poderia usar seu próprio know-how pra isso, né?

E ai de você se você tiver que cumprir prazos: se o sistema não funciona, se seu computador deu problema, se você tem que cuidar das crianças porque a creche tá fechada… o problema É SEU. Nem vou me aprofundar na situação das nossas horas de trabalho diárias. O abuso de nossa carga docente é constante, violando completamente os horários de trabalho regulares, para não falar em diversas outras violações. Vejo colegas que amam o que fazem, que são meus exemplos de docência, deprimidos e cansados, sem motivação para fazer o que escolheram para a vida.
E os alunos? Bom, sabe como têm funcionado as aulas na ETEC? Os alunos, para terem presença, precisam entregar as atividades avaliativas que os professores definem. Ou seja, não importa se você está presencialmente nas aulas online, o que importa é entregar trabalhos.

Tela enviada por um aluno(a) que estava com problemas para acessar o teams. Situações como essas são uma constante.

Agora, o fato é que, quando entregam, a maioria tem feito dezenas de trabalhos iguaizinhos. Por quê? Porque se preocupar em ver vídeos, fazer aulas online, etc? Em grupos do facebook vejo constantemente alunos vendendo a mão de obra para fazer atividades para os outros. Sabe como isso se chama? Empreendedorismo. É matéria da ETEC, e esses alunos estão de parabéns.

Aluno(a) oferecendo serviços de elaboração de atividades. Empreendedorismo.


E os que não têm tecnologia para acompanhar as aulas? Bom, alguns se viram com as atividades impressas, que os pais retiram na escola, mas a maioria simplesmente abandonou. Estudar com o professor preso em casa, em frente a uma tela fria de um aparelho, no meio da confusão de casa, já é péssimo… imagina estudar sem NINGUÉM pra te orientar? EU desistiria. Como acho que é o que todos deveriam fazer. Muitos alunos, muitos mesmo, reclamam que não aprenderam nada desde o começo da pandemia. Eles têm toda a razão.

Imagem de vídeo institucional do Centro Paula Souza, demonstrando como tudo está “normal”.

Mas a superintendência da ETEC diz que as aulas não pararam, que 75% dos alunos frequenta nossas aulas. Claro, porque fraudam os dados usando esse esquema de presenças por atividade, fazem vista grossa, nos obrigam a reabrir atividades entregues HÁ DOIS MESES para os alunos que não fizeram refazerem. Tive aluno aprovado em matéria do curso técnico com menos de 20% de presença e sem entregar nenhuma atividade. E tudo isso é legal, viu? Há uma série de dispositivos no regimento que garantem que você não estude uma vírgula de uma matéria e passe. Afinal de contas, se não tivermos muitos alunos aprovados e turmas atingindo uma meta de evasão mínima, perdemos aulas. É chantagem: eu perdi tantas turmas neste semestre que minha carga horária de trabalho (e meu salário) foram cortados PELA METADE. Ou seja, se eu ficar reprovando aluno, não tenho aula e perco salário. No final, o aluno é um número, e apenas isso.
E, para terminar essa minha longa reclamação, para jogar ainda mais merda no ventilador nesse suposto dia de homenagens, vamos falar sobre essa mentira chamada Competências Socioemocionais. Se você não dá aula, capaz de não ter ouvido falar ainda, mas é a grande vedete da educação neoliberal! O lance é que nosso trabalho como professores não é mais ensinar quaisquer conteúdos, nem trabalhar valores éticos, nem senso crítico… é desenvolver “competências e habilidades”. Há vários trabalhos excelentes de pesquisadores que apontam todas as falhas nesse sistema, além do fato de que isso é na verdade um instrumento de ingerência do mercado e de diversos institutos liberais no nosso ensino. O que devemos ensinar? Coisas como empatia, adaptar-se ao novo, resiliência, etc. Pegam toda uma série de conceitos de áreas diversas (muitas delas sérias), mastigam e dão uma tinta de coaching, e dão pra gente trabalhar. E tudo isso sob a supervisão do glorioso Instituto Ayrton Senna, da Fundação Lemann e de uma pá de grupos que não quer formar cidadãos, mas gado. Gado subserviente ao mercado, resiliente e que não reclama de ter que trabalhar em serviços de merda. Isso tá sendo ensinado pro seu filho, com cores bonitas e toda uma parafernália visual que me faz pensar o quanto de dinheiro público tá indo nisso.

As competências socioemocionais, segundo o Instituto Ayrton Senna.


Enfim, como professor, o que eu quero desse dia?
Que vocês lutem. Lutem contra a precarização da minha profissão. Lutem contra a continuação das aulas remotas. Lutem contra o EAD. Lutem contra a gestão empresarial da educação. Lutem.
Eu só quero que tudo isso acabe, e eu possa abraçar meus alunos. Tudo que eu faço é por eles. Os parabéns ficam para outra hora.

E SE NÃO VOLTAR AO NORMAL?

Caso você ache que não sabe lidar com certas percepções mais pessimistas, especialmente em momentos como o de agora, por favor, não leia esse texto. Ele pode possuir gatilhos para ansiedade e similares. Eu só espero que fique tudo bem para você.
Há alguns anos eu descobri a existência de um documentário chamado Into Great Silence, que narra uma experiência no mínimo única. Ele apresenta o dia a dia de um grupo de monges de uma ordem católica chamada Cartuxos, que se dedicam ao voto de silêncio. Eles vivem enclausurados em um mosteiro isolado, não entram mais em contato com suas famílias e amigos e, basicamente, o seu dia dia consiste em fazer tarefas simples de sobrevivência, cuidar de seus jardins e roupas… e orar. E, para respeitar o voto, eles só produzem algum som quando oram. Ou seja, eles não conversam entre si, a não ser em extrema necessidade. Seu dia é uma repetição das mesmas ações em completo silêncio.

 

Para realizar o documentário, o diretor Philip Gröning enviou uma carta aos monges e teve que aguardar a resposta deles. E ele aguardou por 16 anos! E, para respeitar o espaço desses monges, o diretor foi sozinho e passou a viver com eles, sem falar, respeitando a sua rotina. Não levou nenhum equipamento além da câmera, usando apenas luz artificial e sons ambientes. Não há música, nem falas o filme todo. O filme tem mais de duas horas de duração.
Eu admito: ainda não terminei de ver. É um exercício de paciência monumental, ao mesmo tempo que uma forma de repensar nosso próprio universo cotidiano. Quantos de nós, voluntariamente, conseguiríamos dedicar o resto de nossas vidas ao completo silêncio, clausura e nunca mais retomar o que hoje fazemos. Quantos de nós somos capazes de abandonar toda tecnologia, todos os vícios, todo nosso conforto, para mergulhar numa existência de compenetração e silêncio?
Imagine que, neste momento, estamos sendo obrigados a viver isolados uns dos outros, a evitar festas, encontros, esportes, muito do que faz nossa vida diversa. Muitos mantém sua rotina de trabalho com home office, mas não é a mesma coisa. Sair após um longo dia com os amigos e ser surpreendido, por exemplo, com uma banda tocando num barzinho ao fim do seu expediente e decidir, sem muita cerimônia, dar uma paradinha para beber uma, é algo tão banal que agora parece muito maior a nossos olhos. Desde sempre a humanidade celebra, e não é possível pensar a história da nossa civilização sem festas, sem encontros sociais. Tanto que muitos rompem os limites impostos pela situação derivada da pandemia, e se arriscam para fazer… um churrasco! Uma baladinha, que seja.
O lazer é algo fundamental para nossa sociedade, e muitas vezes nós esquecemos disso, porque o capitalismo nos faz acreditar que o ócio é algo negativo, e é o oposto do trabalho. Como é necessário que o trabalhador gere o lucro para o patrão, o sistema no qual vivemos nos impõe a ideia que o tempo de lazer é tempo perdido. Agora mesmo, por exemplo, muita gente se dedica ao home office não apenas porque precisa, porque não quer arriscar perder seu emprego, mas porque sente uma necessidade imensa de se ocupar. Se não podem, buscam afazeres domésticos, por exemplo. E, claro, o ócio acaba se organizando em programações de leituras, de maratonas de séries, etc. Ócio programado é um efeito colateral grave do capitalismo doentio de nossos tempos.
E, claro, a gente se esforça para ter esperança. Uma das coisas que mais ouço dizerem é sobre o que farão quando a quarentena acabar, e tudo voltar ao normal.
E se não acabar? Alguém já parou para para pensar em algum momento que essa situação pode nunca mais acabar? Que o vírus pode sofrer mutações e, com isso, talvez nunca consigamos uma cura definitiva? Que talvez a nova forma de vida seja essa que experimentamos agora? A humanidade do século XXI parece não se dar que sua vida pode ter mudado para um novo formato em definitivo. Nossa economia não está pronta para isso, nossa estrutura social não está pronta para isso, nosso psicológico não está pronto para isso. Mas pode, sim, ser possível que jamais saiamos de casa.
É ruim pensar assim? Eu sei que é. Mas não é a ilusão de que há um “normal” para onde podemos voltar que vai nos garantir algo nesse momento. Há pessoas que não conseguem viver com isso em mente, e eu entendo, respeito isso. Contudo, os dias vão passando e a distância entre nós e nossa vida anterior parece cada vez maior. E, mais do que isso: percebem como ninguém está falando este ano que “o mês passou muito rápido”? É porque o tempo parou. Nós não estamos fazendo um milhão de coisas em nosso dia, não estamos saindo de casa com frequência. O esperado é que, nessas condições, o tempo passe de outra forma. Percebemos agora sua passagem lenta porque criamos expectativa, e sempre que se cria expectativa por algo, é normal que a ansiedade nos faça perceber o tempo mais devagar. Criamos formas de desviar nossa atenção da inevitabilidade da mudança: fazemos yoga. Yoga, como qualquer atividade, nos tira do mundo concreto e nos lança para uma percepção corpórea completamente dissociada do tempo. Mas a yoga acaba, você liga a televisão, a internet, o rádio… e mais mil pessoas morreram.
Talvez fosse mais fácil eu não escrever esse texto, deixar as premissas pessimistas que o formam numa caixinha. Fazer como colegas de trabalho que acordam num sábado de sol como o de hoje e mandam correntes positivas. “Vamos escrever apenas o que está sendo bom para nós neste período de pandemia?” Aí virão as respostas padrão: leitura, estar mais com a família, prestar atenção às pequenas coisas, fazer yoga. Eu, sinceramente, dispenso. Ver o lado positivo de uma tragédia humanitária é a mesma coisa que olhar para alguém que acabou de perder as pernas e dizer “ao menos você está vivo”. Pode parecer um alento, mas muitas vezes é violência. E não, isso não é culpa de quem tenta nos animar. Mas ver diariamente o site “Só notícia boa” não diminui o número de mortes. Nada do que você faz diminui.
São como minhas aulas online. Posso fazer o máximo para preparar materiais, slides, vídeos etc. Nada disso é educação, mesmo que eu me esforce. Todos os colegas professores nesse momento são heróis, e merecem aplausos por tentarem fazer o máximo para que seus alunos não fiquem desamparados. Mas isso não irá se sustentar o tempo que precisamos. As aulas não vão voltar a ser presenciais esse ano. Todos os alunos serão prejudicados. Não há lado bom disso – a não ser para os donos de tecnologias e projetos de EAD, que como bons capitalistas que são, vão lucrar com a tragédia.
Passo dias enviando dados sobre minhas aulas para preencher planilhas e mais planilhas. Ontem, após (mais) uma aluna vir me dizer que não ia conseguir enviar atividades que tinham prazo determinado, por não ter acesso à internet essa semana, me enchi. Taquei no ventilador (também conhecido como grupo de whatsapp dos professores) e, claro, gerei incômodo e insatisfação com minhas afirmações. Em seguida, colegas começam a enviar mensagens positivas, de “tudo vai dar certo”, “vamos aprender a lidar com isso”, etc. Já não deu certo, mas eles não querem admitir. Eu entendo, eu respeito, mas não espere de mim que eu aceite que uma pessoa não tenha acesso às minhas aulas porque suas condições financeiras a impedem de ter uma internet de qualidade. A sociedade já é suficientemente injusta fora de uma pandemia. E me desculpem se eu penso no bem estar dessas pessoas que educo antes de pensar na minha folha de pagamento, porque eu sei que muitos colegas têm filhos, sustentam casas, e não podem pensar de outra forma. Não é um julgamento. Perdoem, também, se eu não sou capaz de aceitar que empreendedorismo é uma palavra vazia de sentido, que não serve para nada a não ser nos escravizar a ponto de acharmos que umas frases animadoras são o suficiente para tudo mudar. O talvez que mudaria alguma coisa seria matar o presidente da república, seus ministros e apoiadores, mas eu não vou fazer isso, porque não tenho armas, não sei atirar e não quero matar ninguém. E, de repente, eles virassem mártires. De pouco adianta.
Porém, e aí eu retomo, temos que começar a lidar com a possibilidade de o isolamento social e as centenas de mortes serem o novo normal. E, com isso, parar de achar que existe algo normal. Trabalhar pra ganhar salário não é algo normal. Pagar por transporte, saúde e educação não é normal. Três ou mais pessoas passarem diariamente na minha casa pedindo comida ou dinheiro não é normal. Bilionários não são normal. Nunca existiu vida normal, e não existe pra onde voltar. Esse lugar que você acha que existe, que é quentinho e aconchegante, é seu cérebro te impedindo de entrar em desespero.
Mas qual a solução? Eu jamais disse que iria escrever sobre soluções. Porém, começar a ver que o que temos até hoje deu errado é, talvez, o primeiro passo para mudar algo. Começar a abandonar ideologias fajutas, frases feitas, autoajuda, empreendedorismo, esoterismo vazio e partir para a ação. Eu não sei atirar, mas sei escrever. Eu fui armado com a habilidade intelectual, e vou usá-la como eu puder. Só que eu não vou usá-la para trazer paz a ninguém, e sim motivar alguma forma de mudança. Se alguma forma de mudança envolver te irritar, te incomodar, eu fiz meu trabalho. E peço desculpas por isso.
Não estamos preparados para viver uma vida nova, na qual o isolamento será o novo normal. Eu disse lá no começo: não vivemos sem festa. Logo, se me permitem futurologia, eu creio que caso essa pandemia se mostre invencível, caso a vacina não venha, vamos entrar sim num novo normal. Vamos aceitar a convivência diária com os mortos. Vamos voltar a lotar estádios, show, churrascos. E contar milhares de mortos até a imunização natural. Quem sobreviver, que toque adiante. Mas não, não vai rolar de cancelar o Carnaval. Porque, pensa, sempre que rolam enquetes do tipo “o que você faria se esse fosse seu último dia”, as pessoas respondem coisas que envolvem atividades alegres, festas, etc! As pessoas querem mais é aproveitar a vida ao máximo antes de ir. As pessoas vão celebrar ainda mais a vida quanto maior a certeza da morte. As pessoas festejam a vida porque morrem! E talvez nessa festa encontrem a energia para dinamitar o sistema que nos oprime, para acabar com a raça dos fascistas e buscar uma forma de vida que valorize o pouco que nos restou. Gente ruim como essa que nos governa não pode ser tratada como se merecesse algum tipo de compaixão. Esses dias vi uma matéria em que um grupo de homens escoltou, armados, uma deputada negra dos Estados Unidos, após a região onde ela trabalha ser alvo de protestos pela reabertura. Esses protestos estavam recheados de brancos, altamente armados, com bandeiras confederadas e outros símbolos racistas. Assim, compaixão é um valor incrível, tenho imenso respeito por quem a tem. Só que eu tenho muito mais respeito pelo preto que pega uma arma pra acabar com o racista e defender os seus.
Não estou certo, nem estou dizendo que isso é ético. Estou dizendo que é o caminho. A humanidade precisa mudar, nem que seja na marra. Não estamos preparados para esse novo normal, mas precisamos fazer de nosso desespero força de luta. Não é mensagem de esperança não, é só o que resta.
Aliás, antes que eu me esqueça, nem toda a humanidade está despreparada para esse novo normal. Os Cartuxos estão. E eu não consigo terminar de ver duas horas editadas de sua rotina.

A Maldade Humana

Em 2014, o então presidente Obama tentou passar algumas medidas (bem leves, na verdade) de contenção à queima de carvão, para tentar diminuir a poluição. Em resposta, surgiu um grupo chamado “coal rollers”, algo como “carvões ambulantes”. Esses cidadãos passaram a modificar seus veículos, a maioria grandes picapes à diesel, para que eles queimassem mais combustível que o necessário, com o objetivo de soltar uma fumaça negra, tóxica e em grande quantidade.

Aí você pode me perguntar: mas, peraí! Eles estavam poluindo de propósito porque odeiam o Obama? Sim, exatamente. Eles gastaram muita grana para que seus carros fossem máquinas de poluição. Eles sabem as consequências disso, sabem que estão destruindo sua saúde e a das pessoas à sua volta. E não se importam nem um pouco com isso.
E, aliás, eles nem são tão “perigosos” como pensam. Porque o tanto de poluição que seus carros podem produzir não é capaz de causar o mesmo dano que uma fábrica, por exemplo. O sentimento de destruir o meio ambiente com toneladas de fumaça não é a motivação real disso, mas sim irritar seus inimigos. Ou quem eles identificam como inimigos, na época.
E é muito fácil quando você pode pegar uma figura específica e transformá-la no seu Judas. Obama, o primeiro presidente negro, não é nem de longe um esquerdista. Mas é um símbolo fácil para o americano padrão branco conservador cristão e armamentista despejar sua energia lotada de ódio.
Já há milhares de análises sobre esse imenso ódio que algumas pessoas cultivam, especialmente o político, e não tem porque eu falar disso. Eu quero falar de outra coisa bem mais complicada, polêmica, mas que há muito, muito tempo eu venho pensando em falar – e até escrever, academicamente, sobre: a maldade humana.
Vejam, é difícil falar em maldade sem assumir uma postura essencialista. O mal enquanto um substantivo definido depende da existência não apenas de seu oposto, um bem, mas de um fundamento que o legitime enquanto noção autossuficiente, e não perspectiva. Ou seja, eu não posso dizer que existe o mal sem entender que existe uma essência, pois o contrário dessa lógica seria a ideia de que a noção de mal é relativa pois, de fato, não há uma essência. Esse debate filosófico é muito maior que um texto como esse poderia dar conta, mas eu posso retomar o mais superficial dos confrontos, que é a visão de dois pensadores clássicos da filosofia: Rousseau e Hobbes.

Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e Thomas Hobbes (1588-1679 )

Contratualistas, ambos concebem a nossa sociedade como um ponto posterior ao que chamariam de “Estado de Natureza”, ou seja, aquele anterior à organização de nossa sociedade, do Estado, em que poderíamos contemplar a natureza do ser humano. Aula de filosofia do ensino médio, gente: Thomas Hobbes, autor do famoso Leviatã, concebe os seres humanos como essencialmente todos egoístas. O que nos move, em suma, é o medo de morrer e o desejo de conquistar o que é do outro. O estado natural do ser humano é o conflito, e por isso o ser humano tem instintivamente o desejo de soberania. Daí existir uma série de dispositivos para controlar o ser humano, como o próprio Estado, suas leis, a polícia e assim por diante. Já o iluminista Jean-Jacques Rousseau é famoso pelo seu conceito de “bom selvagem”, o ser humano em estado natural é essencialmente bom, e é a sociedade que o corrompe. Ou seja, o progresso da civilização é que afasta o ser humano de seu estado natural, em que todos somos livres, iguais e sem vícios. É um confronto entre duas noções de liberdade: a liberdade negativa, de Hobbes, na qual o ser humano livre é capaz de tudo e, inevitavelmente, entrará em conflito com seu semelhante; e a liberdade positiva, de Rousseau, na qual o ser humano livre é ingênuo e puro, e por consequência feliz. Pode-se, claro, adotar a “coluna do meio” nesse debate, especialmente se se buscar afastar o essencialismo, crendo que as noções de bem e mal, em si, são trespassadas por conceitos e percepções culturais difusas, complexas e de modo algum similares entre todas as sociedades.
É possível afirmar, contudo, que em algum ponto há o cruzamento de certos feixes de ações que levam ao que chamamos de bem – no caso, e na maioria das vezes, “de bem comum”. Quando descrevo as ações dos “coal rollers”, é um tanto quanto crendo que o leitor deste texto assumirá que é um gigantesco absurdo esse ato. Há uma esperança em narrar uma história sob a expectativa de um julgamento moral, senão não há porque fazê-lo. E, por outro lado, é quase inescapável ao leitor o ato de julgar, especialmente porque o fato narrado dialoga com a política, espaço pleno de reflexões e juízos de valor. Ou seja, há uma “esperança” depositada no receptor de uma mensagem de que ele entenderá certa confluência de ações como algo nocivo, como algo que fere uma noção de “bem comum”, organizada sob uma sentença simples: poluir é errado. Por mais que saibamos que há uma convenção por trás da afirmação, essa convenção já quase se coloca como axioma, pois vemos o resultado da poluição de modo objetivo em nosso cotidiano. Mesmo os negacionistas do aquecimento global não negam, em si, que haja poluição ou que ela seja nociva, mas que os argumentos relativos à maneira como isso ocorre no que diz respeito ao nosso ecossistema, a irreversibilidade dos danos, e as soluções propostas para tal, não são sustentáveis. Nesse sentido, quando alguém se coloca a favor de algum ato que gere poluição, ele normalmente o justifica de algum modo, e não assume o ato como um desejo objetivo por prejudicar algo ou alguém.
Certo?
Bom, então como explicar os Coal Rollers? Eles são movidos por um desejo: prejudicar seus inimigos, no caso, materializados na figura do ex-presidente. Buscar o prejuízo de alguém, e muitos vão se debruçar sobre isso nos estudos das várias áreas da psicologia e psicanálise, pode sim ser um reflexo de recalques, frustrações e um sem número de elementos de formação de nossa psique que foram “quebrados” em algum ponto do processo. Eu sou capaz de pensar o ódio de um Incel, que se organiza para matar mulheres jovens, por conta de sua psique construir uma ideia de que elas são as responsáveis pelo seu sofrimento psíquico. Sou capaz de refletir ao lado dos pensadores da mente humana. Mas, convenhamos, será que não estamos há muito tempo dourando uma pílula que não deveria ser dourada? Será que, em certas situações e em relação a certos indivíduos ou grupos de indivíduos, isso deixa de ser reflexo de algo e passa a ser apenas uma expressão concreta e acabada da mais pura maldade?
Advogo pela maldade essencial humana? Sou advogado de Hobbes? Acho que é impossível uma sociedade se organizar sem um estado que reprima as tendências maléficas do ser humano? Não, mas sim. E vou tentar explicar.

 

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O presidente Jair Bolsonaro é visto em um bairro no Sudoeste de Brasília nesta sexta-feira, em meio ao surto de doença por coronavírus.ADRIANO MACHADO / REUTERS. Fonte.

Nos últimos dias, uma série de ações do presidente da república Jair Bolsonaro têm criado uma situação de conflito talvez inédita na história da República, ao menos publicamente. Aparentemente, o presidente está propositalmente agindo contra todas as orientações dadas pelos especialistas de saúde acerca da prevenção ao Covid-19, e de maneira bastante explícita. Contrariando não apenas, aliás, adversários, mas supostos aliados, como seu ministro da saúde. É possível pensar em algumas hipóteses: primeiro, que isso seja uma disputa política interna, muito fundamentada em seu ego, que vê qualquer figura de seu espectro como um inimigo em potencial – no caso atual, o ministro Mandetta, muito elogiado até por adversários por seu trabalho; em segundo lugar, que ele realmente esteja pensando apenas na economia, pois seu governo tem uma dívida gigantesca com certo setor do capital que vê paralisação de atividades como uma afronta ao sistema, construído sobre a exploração do trabalhador – e no consumo; ou, em último caso, como faz parte de uma tradição dos conservadores negacionistas, talvez ele esteja questionando a periculosidade do vírus, considerando-o realmente apenas uma “gripezinha” e achando que pode vencê-lo apenas pela virilidade de seu histórico de atleta. Para muitos, é uma combinação dos três pontos, e é talvez uma das formas mais coerentes de montar o quebra-cabeça do presidente. Ou, talvez, ele apenas seja uma má pessoa.
E, vejam, o que eu quero dizer com uma má pessoa? Bom, se eu considerar Hobbes, seria aquele que não passou pelo processo “civilizatório” que a sociedade nos impõe, e que sem as amarras do estado e das forças repressoras instituídas, age a bel prazer. Não posso concordar em pensar assim, especialmente porque o que nós delimitamos como “civilizado” é muitas vezes puro etnocentrismo. O ato de comer animais silvestres, que supostamente conduziu ao atual evento pandêmico, apenas é considerado não civilizado porque cometido por um povo outro, que não o nosso. Civilização, para essas pessoas, é confinar milhares de aves em um espaço apertado, enchê-las de hormônios, e não esperar que, com isso, surja uma doença aviária tão ou mais mortal que a atual versão do vírus corona. E qual a diferença entre o chinês que come morcegos e o paulista que vai para casa dos pais no interior jantar uma deliciosa carne de tatu? Civilização é só desculpa para um tipo de preconceito que eu não vou sustentar neste texto.
Porém há um outro aspecto que podemos, sim, construir a partir da ideia de uma natureza má. A criança que, ao advertida pelos responsáveis que enfiar o dedo na tomada pode se machucar, ainda o faz, para desafiá-los. O menino que chama o colega negro de macaco na escola para rir de seu choro. A menina que insiste em ganhar um presente dos pais para, assim que o recebe, se livrar dele como se não tivesse mais valor algum. Todas essas ações da infância, talvez, apontem para uma natureza que é indomável e, objetivamente malévola. A nossa imagem culturalmente aceita da criança pura e imaculada, um recurso de proteção psíquica, que nos faz sempre partir da ideia que crianças são inocentes e incapazes de entender o que fazem talvez seja, na verdade, uma limitação de nossa visão. Porque inocência não é a mesma coisa que inconsequência, e pureza não é o mesmo que irresponsabilidade. A infância é a terra da indolência e do desejo. Os pais são o primeiro bloqueio “hobbesiano” ao nosso impulso de destruição. Às vezes, essa destruição se motiva pelo desejo por algo ou, é possível perceber, apenas pelo ato em si. Uma indolência ontológica.

Luiz Hanns, em vídeo para o canal Casa do Saber, aponta o que seriam cinco níveis de maldade: o primeiro, a falta de consciência, é a mencionada maldade infantil; o segundo nível, o do egoísmo, ligado ao narcisismo e ao desejo, e o dano ao outro é na verdade um efeito colateral do desejo; o terceiro nível é o do fanatismo, a pessoa obcecada por alguma convicção filosófica, política ou religiosa, que portanto está restrita a essa cultura e, nesse caso, há uma inversão de valores pois o ato não é maligno para quem a pratica; o quarto nível é o daquele que objetivamente deseja a destruição do outro, que vem do ciúme, da vingança, da inveja, do ressentimento e assim por diante – uma reação a um estado de desequilíbrio -; e, por último, a falta completa de empatia, a nossa conhecida psicopatia, caracterizada pelo desejo de maldade em si, motivado pelo desejo de exercer poder sobre o outro ou pelo prazer derivado da dor do outro. Hanns coloca esses níveis como uma escada, baseada na reversibilidade da maldade em questão.
Não sou psicólogo ou psicanalista, mas nesse ensaio aberto em que tento pensar a tal da natureza maléfica de nosso chefe de estado, eu sinceramente colocaria os cinco níveis como traços, como aspectos horizontais que permeiam esse ser maléfico. O primeiro, infantil, é o que deriva de sua ignorância e falta de inteligência. O segundo, nível do egoísmo, é o que se manifesta em seu egocentrismo, em seu desejo de ser o centro das atenções, o salvador da pátria, o herói, o mito. O terceiro, claro, manifesto em sua aliança com as forças do neopentecostalismo evangélico e com o fanatismo conservador, militarista – com a simbologia da ditadura permeando toda sua performance. O quarto, aquele que é fruto de seu conflito com a esquerda, com o ódio polarizador, com a imagem de Lula e de Paulo Freire, que se alimenta de inveja, ressentimento e faz do anticomunismo e do antipetismo mais que visões de mundo, mas fundamentos de sua política. E, claro, a total falta de empatia pelo outro, capaz de subjugar milhões de pessoas a um estado de desmaparo diante de uma doença que já tolheu a vida de milhares pelo mundo, apenas pelo prazer do mais puro caos.
O pesquisador Delroy Paulhus chama essa maldade que, talvez, eu esteja me referindo de “sadismo cotidiano”. Ele a difere da psicopatia, do narcisismo egocêntrico e até do maquiavelismo, e a vê muito claramente nos chamados trolls de internet. “Eles são a versão online do sadista cotidiano porque passam um bom tempo procurando pessoas para atacar”, diz o estudioso, que aponta ainda que há um interesse grande dessas pessoas em cargos de liderança ou que permitam o uso da força, como polícia e exército, pois “alguns indivíduos escolhem empregos junto a elas por acreditarem que terão um mandado para infligir dor em outros”. Basicamente, o desejo do sádico cotidiano é que o outro sofra, e ele irá conscientemente se munir de meios para permitir que seu desejo seja satisfeito.
Ele pode, por exemplo, se tornar capitão do exército. Ou, ainda, virar deputado, presidente. Pode criar seus filhos para serem como ele, bem como encontrar uma série de pessoas que são como ele e, portanto, vão apoiá-lo por serem pela primeira vez representadas em alguém que, como elas, é um sádico cotidiano. No dia que escrevo este texto, um homem agrediu com um tapa no rosto um mendigo que lhe pedia algum dinheiro, não sem antes tentar enganá-lo oferecendo uma quantia para que se aproximasse. Esse ato foi filmado por ele mesmo, e é esse o prazer do sociopata de hoje: o prazer público. Não é sabido ainda, mas não demora para em algum momento surgir aquelas notícias “homem que agrediu morador de rua é bolsonarista”. Já vimos, desde a eleição a mesma coisa com estupradores, feminicidas, agressores de toda ordem. Todos orgulhosos erguendo suas bandeiras e defendendo o presidente como quem defende um tesouro. Todos gozando pela primeira vez de modo público seu sadismo cotidiano.

Perversão, para Freud, está ligada ao prazer sexual e, como aponta Christian Dunker, o sadismo é a forma de perversão mais associada à psicopatia, relacionada diretamente à fetichização e à desumanização. E para ele, ainda, é possível perceber um laço social construído de forma a objetificar o outro, e um movimento coletivo baseado em sadismo, que pode criar até uma cultura perversa. Perversidade, ainda, envolve um desejo de exercer, novamente, o poder sobre o outro, a “perversidade ordinária”, moral.

Tudo isso para deixar bem claro algo que devia estar já nas nossas discussões de maneira objetiva: nossa sociedade é formada por uma parcela enorme de pessoas perversas, malvadas mesmo. Quer um dado? Diante de todas as ações cometidas pelo perverso que senta-se na cadeira presidencial, ele mantém uma porcentagem de apoio irrestrito na faixa dos 30%. Isso quer dizer que 30% da população é formada por sociopatas? Eu devolvo a questão: por que não seria possível? Por que, numa sociedade construída em torno do fetichismo da mercadoria e da objetificação das relações sociais, mediada pelo espetáculo, não poderíamos agora viver em um país em que quase um terço da população é formada por gente realmente má? É terrível admitir isso, mas quem sabe o que estamos há alguns anos tentando fazer, jogar alguma luz na cabeça desse mundaréu de gente que veste verde amarelo, seja completamente inútil? Talvez, e cada dia mais me convenço disso, essas pessoas sejam simplesmente seres que, seja pela natureza, seja pelo meio, se tornaram completamente incapazes de vivenciar uma vida em sociedade baseada no bem comum. Talvez um terço do povo brasileiro não tenha a menor condição de viver em uma sociedade baseada em valores coletivistas, solidários, humanistas e assim por diante. Talvez, até este momento, por não possuírem o poder – ou um representante no poder, essas pessoas despejavam seu fetiche nos atos do pequeno poder, na violência contra os mais fracos, no racismo, no abuso, e assim por diante. Agora se veem representados, livres e capazes de usufruir publicamente do seu gozo perverso.
Talvez tenhamos não apenas um problema, mas mais de 60 milhões de problemas. E, talvez, tenhamos que aceitar que, quando voltarmos a algum estado mínimo de bem estar coletivo, essas pessoas já não vão mais querer voltar para a casinha. E, talvez, o que Bolsonaro faz no governo não seja incompetência, não seja ignorância, não seja loucura, não seja posição política ou mesmo fé. Seja apenas pura e simples maldade.