O que estamos lendo?

Uma lista de livros mais vendidos em 2019, publicada pelo Estadão, circulou esses dias pelos meus contatos, sob uma verdadeira chuva de críticas. A lista em questão possuía, em quase sua totalidade, literatura de auto-ajuda, empreendedorismo e similares. Nenhum livro de ficção, poesia, filosofia, nada. Oh, o horror!

(na imagem, Luccas Neto, YouTuber e autor de um dos livros mais vendidos do ano de 2019)

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Foto da jornalista (e minha amiga) Bárbara Muniz Vieira, de um dos enterros dos mortos do massacre no cemitério de Suzano. Fonte: G1.

Quando Simone de Beauvoir afirmou “não se nasce mulher, torna-se”, a despeito do que bobocas que acreditam em ideologia de gênero creem, ela estava falando (também) sobre papeis sociais. O papel social da mulher é pré-definido pela sociedade na qual ela nasce, e é determinado pela relação entre seu gênero e sua sexualidade enquanto objeto de dominação masculina: pode ser aquela que procriará, que continuará a linhagem (do homem) ou aquela que servirá para satisfação dos prazeres sexuais (do homem). Ela não determina seu modo de ser mulher, ou mesmo se quer ser mulher – se caso, por exemplo, ela perceba não se encaixar no gênero com que nasceu -, quem determina isso é a sociedade masculina, desde seu pai – por isso, chamada de patriarcal.

Porém, de modo algum deveríamos pensar que essa linha traçada por Beauvoir se restringe à mulher. Há ali uma determinação binária, que enxerga a sociedade sob essa divisão baseada no modelo pseudobiológico-teológico, pelo qual só existem dois alinhamentos gênero-sexo possíveis e suficientes, e tudo mais é desvio. Nessa lógica, se a mulher tem um papel, o homem também deve ter. E, como tal, “não se nasce homem, torna-se”.

Mas, enfim, já desde cedo somos apresentados a duas coisas que são a extensão básica do que é “ser homem”: o carro e a arma. Criança, meu primeiro brinquedo foi um carrinho. Depois, sucederam-se claro as arminhas, arco e flechas e bonequinhos de soldados. É bom sempre lembrar o quanto a arma é próxima do pênis, simbolicamente, pois ela é também um cano que atira. No caso, uma potência de morte, enquanto o pênis é – supostamente – uma potência de vida. Não é à toa que nossa masculinidade se construiu em torno de armas porque a maioria delas é fálica, mas a arma transcende isso, por ser fácil de manejar e promover um espetáculo muito maior – e por, como o pênis, atirar. Como somos ensinados desde cedo a ser brutos e a chamar a atenção – enquanto as mulheres devem ser sensíveis e recatadas, claro – o diálogo com a arma é sempre muito prolífico, e quando vamos para os videogames já fomos consumidos pelo fascínio por nosso segundo pênis. A partir daí, a coisa vai se engrossar, porque vamos ter que provar o tempo todo que somos dignos de ser chamados de homens.

A tragédia de Suzano é, dentre outras coisas (e não acredite em quem diz que o problema desse caso é um só), um problema de gênero. O que cria um adolescente que frequenta chans, fóruns de ódio da internet, é o mesmo caldo cultural machista que determina que a mulher seja o depósito de esperma masculino – termo, aliás, usado e abusado pelos usuários desses espaços. Seu modelo de comportamento é delimitado pela pressuposição do que deve ser um homem diante do que deve ser a mulher desse homem, ou seja, que um homem deve ter certas características para que ele possa ter a sua “fêmea”. Nessa lógica, o homem precisa ter certo tipo de aparência e personalidade que demonstre virilidade. E, como tudo nesse mundo, as relações que o homem irá estabelecer com o modelo “ideal” de masculinidade são todas simbólicas.

Como as mulheres, somos eternamente colocados diante dos outros como adversários, e essa competição vem desde a mais tenra infância. É na infância, muitas vezes, que se nota a “pistolinha” do menino, com diversas brincadeiras ligadas ao genital e toda a coisa de se mijar de pé como sendo delimitadores iniciais do que é “homem” em relação a seu oposto. E, se a mulher será o depósito do esperma masculino, é necessário, ao homem, que o objeto que produz o sêmen seja adequado à tarefa. O homem entende que a pistolinha serve para algo além de mijar de pé na mesma época que começa a entender o que é o sofrimento e ter que lidar com isso. E a inundação de hormônios que lhe estoura espinhas na cara e causa ansiedade encontra, ali, um relaxamento inevitável. Para tal, começa a procura a estímulos e, claro, o início da comparação com algo irreal e muito maior. Mas, antes que alguém já ache que é esse o tema, advirto que não vou debater pornografia aqui, mesmo que seja do que estou falando, porque não necessariamente a condeno como a grande culpada de tudo; a vejo mais como sintoma de algumas coisas que, às vezes, nem são doentias assim como se pensa.

Trabalho como professor com a mesma faixa etária que matou e morreu ontem em Suzano. É a minha faixa etária preferida desde que comecei a ser professor regularmente, e não troco aulas de Ensino Médio por nada, nem por aluno de faculdade, mesmo que sinta uma falta danada de fazer pesquisa. Ano passado, organizamos na nossa escola, que é técnica, uma feira tecnológica sob o tema “100 anos do fim da 1ª Guerra Mundial”. Queríamos, claro, trabalhar os impactos desse evento histórico do ponto de vista não apenas tecnológico, mas humanista. Sabe o que rolou? A maioria dos grupos queria falar de armas. Nos viramos como pudemos, professores, coordenadores pedagógicos, para tentar fazê-los entender que a Guerra não é “legal” como no videogame, mas que ela é tenebrosa, causou traumas, tirou vidas inocentes. Eu me esforcei trazendo os depoimentos literários do Hemingway e do Remarque para a sala de aula, apresentando um documentário bem forte, pra ver se eles caíam na real. Demorou pra gente conseguir humanizar minimamente o tema, porque o que interessava a eles era saber que armas os caras usaram, como era a artilharia, como se matava na 1ª Guerra. Eram jovens de 15 a 18 anos que só sabiam, por meses, falar de armas de fogo. Alguns, quem sabe, até com acesso a elas.

Desde ontem, vejo pessoas alegando que a associação do Bolsonaro ao ato dos meninos em Suzano seria uma perspectiva dissimulada. Não sejamos ingênuos (ou oportunistas): é claro que não começaram a acontecer atentados do tipo no governo Bolsonaro, muito menos apenas por isso. Também não começaram a acontecer situações do tipo durante a campanha eleitoral de Bolsonaro, apesar de diversos casos de violência terem rolado desde então. Bolsonaro ainda é muito mais um sintoma de uma estrutura apodrecida, que permeia nosso país há anos, que tem raízes muito profundas. Razões que vêm da arminha que era o segundo pênis da criança, e que todos os filhos numéricos do presidente exibem como se ainda fossem seus pênis. O problema educacional que enfrentamos, e que está muito longe de ser o que dizem que é, é fruto da falência  da educação tradicional que nenhum estado, petista, pmdbista, psdbista ou pslista, resolveu de verdade. A maioria nem tenta resolver… Não se dá o devido espaço para um trabalho mais profundo nas escolas, e nem se permite que haja profissionais capacitados para lidar com os problemas psicológicos – e até psiquiátricos – de alunos e professores em nossa educação pública.

A evasão, ao menos onde trabalho, é tratada como um problema de cálculo, de dados estatísticos, e o não como uma realidade ligada aos problemas que levam a essa situação. E os meninos que mataram em Suzano eram alunos evadidos. O sistema escolar não trabalha a evasão fora da noção de gestão, de geração de índices para atingir metas impostas pelos governos e, como isso, garantir mais verba e promover uma boa imagem de campanha. Em contrapartida, toda essa patacoada não ataca os problemas em sua real perspectiva. Temos que preencher relatórios, fazer um sem mundo de burocracias para, ao fim, evitar descontos em nossos salários por não “cumprirmos a meta de evasão”. É um sistema viciado: ou o aluno vai avançando no sistema educacional empurrado, ou ele acaba evadindo. Quem faz o trabalho de pensar a evasão, em geral, são coordenadores pedagógicos e professores, que se viram como podem para trabalhar com as famílias desestruturadas de nossos alunos, mas o fato é que o sistema educacional não ajuda em nada. O abandono desses alunos, afinal, não é responsabilidade a meu ver da escola de Suzano, enquanto corpo de trabalho, mas enquanto instituição precarizada e burocratizada por um estado que nada sabe sobre educação, que acha que nossos problemas são outros e tenta resolver das piores formas possíveis, seja sob qual governo for. O Hino Nacional não impede tiroteios, muito menos parar de falar de sexo na escola. No máximo, tivemos em nossa história poucas ações paliativas e algumas outras de reparação, importantíssimas do ponto de vista inclusivo e representativo, mas que não deram conta desse problema – e nem tinham essa proposição. Eu mesmo ouço desde antes de me tornar professor regular a reclamação sobre as condições psicológicas dos alunos… e isso TAMBÉM não é o único motor da situação toda, como venho alertando pelo texto.

Muito menos os games, minha nossa! Eu jogo games de tiro, tive quando criança, como qualquer menino, brinquedos que alternavam entre arminhas, carros e soldadinhos – difícil falar quando a naturalização dessa divisão entre “coisa de menino e de menina” é vista como uma suposta “ideologia de gênero”, mas parte do problema tá justamente aí, como já falei. Mas não são os games, cara. Aliás, elaborando melhor: é o MACHISMO, estúpido! Ou a gente cria meninos numa educação FEMINISTA, ou a gente sempre vai achar bodes expiatórios para nossos problemas, evitando que os encaremos de maneira franca. No fim, o que temos é uma rede complexa de implicações que se entrecruzam e levam a um verdadeiro caos.

Contudo, NINGUÉM deveria, em sã consciência, negar que eleger Bolsonaro foi como jogar gasolina na fogueira, considerando-se a superexposição dos temas que interessam ao capitão que ora nos preside, da forma como ele os apresenta e celebra. A performance dele é um deleite pros chans: ele ataca a Maria do Rosário, fala de torturador como se fosse herói, posa com arma de fogo e fala como um neandertal. Isso tudo dialoga com algo que já tá aceso faz tempo, que não precisa muito pra explodir, e não tava nem escondido, só encoberto. Pergunta pra qualquer professor se não tem uma pá de “fogueira” na escola, se ele nunca percebeu num aluno aquele jeito de olhar que parece gelar a sua alma. A fogueira da vez se chama chan, é importante que se diga, que são fóruns de masculinistas promotores de misoginia e de todo tipo de preconceito e crime. Tem um monte de adolescente que se sente representado nas figuras do presidente e de seus filhos, e que só acha amigos no chan. Pra quem acompanha pra valer e não chegou no debate agora, a Lola, do Blog “Escreva Lola Escreva”, denuncia chans há uns dez anos, e essas denúncias custaram muito de sua paz. O principal chan foi criado por um homem que está preso com uma pena de 41 anos, e foi de lá que surgiram as ameaças contra Jean Wyllys (principal alvo de apoiadores do Bolsonaro, não por acaso).

Aí que tá o problema: existe sim, uma conexão simbólica gigantesca, entre tudo isso. E não é de hoje: podia falar ainda do papel do filme Tropa de Elite na popularização do estilo “caveira” de ser; da famigerada programação televisiva que alterna programas sustentados na intolerância religiosa com programas policiais que glorificam e banalizam a violência; podia falar de como a Lava-Jato tornou nossa vida uma operação da PF gigantesca, dando superpoderes a uma corja de gente que só tem interesses pessoais, e alimentando o estado policialesco; podia falar de como cresceu e se popularizou toda uma produção musical no interior de São Paulo baseada em abuso, bebedeira e assedio, muitas vezes pior que qualquer funk de perifa, e que é consumida em eventos nos quais “ser laçada” é um privilégio; podia falar de como se tem feito há anos uma campanha contra todo pensamento intelectual brasileiro, condenando nomes fundamentais à nossa educação, como Paulo Freire, e abrindo espaço para ignóbeis psicopatas como Olavo de Carvalho; podia falar de como aceitamos passivamente a inserção no cotidiano de famílias as drogas calmantes, e como temos uma geração de jovens viciados em ritalina; podia falar ainda mais de como o sistema educacional de São Paulo encara a evasão escolar como apenas um dado estatístico e não como um problema real, e sobre como todos os seus projetos para a solução da evasão não passam nunca pelo entendimento do porque um aluno não quer estar na escola; podia falar, por fim, de que não conheço colega educador que nunca tenha ido a um psicólogo ou não tome remédio.

Antes que perguntem ou reclamem, eu nunca achei nem nunca vou achar que minha profissão é dar aula de português. Não é. Eu sou professor porque eu quero melhorar pessoas e a sociedade, porque quero ajudar essa molecada a se libertar dos grilhões que os oprimem e permitir que eles alcem voo. Tento fazer de minha aula um constante processo de humanização. Isso pra mim é ser professor, é profissão de fé. Na semana passada, eu comecei minha aula sobre figuras de linguagem, no 1º ano do Ensino Médio, usando como exemplo da metáfora a imagem da flor na poesia. Uso a frase: “essa menina é uma flor” em oposição a “esse menino é uma flor” para chamar a atenção de como o contexto histórico, social, político etc. determinam o sentido de uma metáfora (e como isso tem tudo a ver com gênero). Sempre que uso esse exemplo, os meninos riem quando eu falo a segunda frase, por associarem isso, claro, à homossexualidade. Ao perguntar, dessa vez, “por que entendemos a segunda frase como algo diferente da primeira”?, ouvi, de um menino: “porque a masculinidade é frágil”. Queria ter acabado ali aquela aula, feliz porque alguns deles já entenderam a matéria. Mas eu não posso, porque ainda há muito o que fazer ali.

E, puxa, como eu queria ter dado essa aula para o Guilherme e o Luiz, ou ao menos que eles ouvissem um colega do Raul Brasil dizendo isso! Quem sabe ligava alguma coisa, acendia uma outra chama que não a do ódio, que seja… Mas aos 17 anos, idade do Guilherme, a vida é uma bagunça, cara. Aos 25, idade do Luiz, eu ainda tinha um monte de merda na cabeça. Eu entendo que eles e tantos outros encontrem nesse caminho a única forma de sair desse sofrimento, e queria dizer pra eles que dá pra fazer isso com a arte também, com a poesia. Tenho certeza que uma “tia” em algum momento disse, mas não conseguiu vencer os muros históricos da ignorância e do descaso que nos separam de nossos alunos. Tenho certeza que a tia da cozinha, que salvou 50 crianças deles, nunca lhes negou um bom dia. Muito menos a coordenadora, que sorriu quando viu o Guilherme voltando pra escola. Tenho certeza que qualquer colega que é da área faria o que elas e outras “tias” fizeram para proteger as crianças em Suzano. Quem é professor sabe que entraria na frente dos alunos, e não duvidem disso. Tem pai que não faria isso e nos chama de doutrinador. Eles não merecem a gente.

Enquanto estavam todos brigando ano passado na internet, só o que se fez foi falar e votar no 17 e fazer arminha com a mão. E sim, mais uma vez, é claro que não começaram a acontecer atentados do tipo no governo Bolsonaro ou apenas por causa dele. O que começou agora, se ninguém fizer nada, é muito, mas muito pior. O Guilherme e o Luís foram só dois de nossos alunos que saíram da caserna, mas tem tantos outros armados e prontos para completar a missão. Somos impotentes enquanto escola, mas não enquanto sociedade. Minhas armas são meu giz, minha voz e a literatura. É com elas que eu vou lutar pra sempre. Quais são as suas?

O povo não é bobo

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Sassá Mutema, o Salvador da Pátria. Fonte: Observatório da Televisão.
Ontem, dia 21 de janeiro, acredito que a Globo assumiu definitivamente a família Bolsonaro como inimiga, ao botar contra o governo um dos principais veículos de sua programação, o Fantástico. Porém, levando em consideração o eleitor do Bolsonaro, não vejo nas denúncias contra Flávio Bolsonaro e Queiroz capacidade de eliminar o discurso que levou a família à presidência da república.

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